1. Do interior à periferia de São Paulo: formação primária (1944-1954)
2.Rumo a Mato Grosso: formação secundária (1955-1961)
3. Em Aparecida do Norte: início da formação filosófica (1962-1963)
4. Na PUC-SP: formação superior (1964-1966)
5. Início do magistério e conclusão do doutorado (1967-1971)
6. Docência na pós-graduação; tempo integral na PUC-SP (1972-1975)
7. Em São Carlos; alguma experiência internacional; de novo em tempo integral na PUC-SP (1975-1978)
8. Ainda na PUC-SP, mas também na UNICAMP: a organização do campo educacional (1978-1988)
9. Na UNICAMP, em RDIDP (1989-1992)

 

1. Do interior à periferia de São Paulo: formação primária (1944-1954)

 

Tenho duas datas de nascimento: uma real e outra oficial. De fato, nasci em 25 de dezembro de 1943 em Santo Antonio de Posse, então comarca de Mogi Mirim, no interior do Estado de São Paulo. Fui, porém, registrado no dia 03 de fevereiro de 1944. Essa era uma situação relativamente comum à época no meio rural. Como nasci em uma fazenda e meu pai demorou a ir à sede da comarca, para se livrar da multa decorrente do não registro no prazo determinado por lei, ele fez constar como data de nascimento o dia em que foi lavrado o registro em Cartório. Filhos de imigrantes italianos que trabalhavam como lavradores nas fazendas de café, meus pais jamais freqüentaram os bancos escolares, embora tenham conseguido se alfabetizar. Meu pai se alfabetizou com ajuda de meu avô, meio em italiano, meio em português, auxiliando, depois, a alfabetização de minha mãe. Tendo adquirido um raro gosto pela leitura, meu pai lia tudo o que lhe caía diante dos olhos: jornais, rótulos, fascículos, romances de folhetim. Com isso atingiu um bom domínio do alfabeto, o que lhe permitiu alfabetizar outras pessoas. Assim, após a extenuante jornada de trabalho na roça, ele reunia aqueles que desejavam aprender a ler e escrever e passava-lhes o que sabia. Era, também, o sanfoneiro do arraial. Através de parentes residentes em São Paulo encomendava partituras que ensaiava à noitinha para poder tocar nos bailes dos fins de semana nas redondezas as novidades do momento. Com isso ganhava um dinheirinho que servia, no final do ano, para completar a conta do armazém. Com efeito, sabe-se que o regime de trabalho então generalizado nas fazendas adotava a forma do pagamento anual, obrigando-se o colono a abastecer-se no armazém da própria fazenda. Ao final do ano, feitas as contas, era comum o agricultor, após ter trabalhado o ano todo de sol a sol, estar ainda com saldo devedor, tal era o grau de exploração da sua força de trabalho. O ofício de sanfoneiro vinha, então, em socorro do camponês. Meus irmãos mais velhos também desenvolveram o veio musical, mas se inclinaram mais para o violão.

            Guardo poucas lembranças dessa fase, sem conseguir distinguir com clareza aquelas que teriam decorrido da vivência pessoal e aquelas que se relacionavam com os relatos dos pais e irmãos mais velhos. Além de alguns fatos pitorescos, ficaram gravadas as doenças de infância, o desespero de minha mãe diante da ameaça de mortalidade infantil (ela perdeu a primeira filha e também aquele que seria o quinto) e a situação de penúria (lembro-me que saíamos à margem da estrada de ferro catando serralha para compor a alimentação familiar).

Em outubro de 1948, as dificuldades da vida da roça que impossibilitavam a sobrevivência de uma família composta de casal e sete filhos (o oitavo nasceria depois, já em São Paulo) forçaram meu pai a se transferir com a família para a capital, São Paulo, onde se empregou como foguista de caldeira na indústria. O mesmo caminho foi seguido pela maioria de meus irmãos que também se tornaram operários nas fábricas da Capital.

Fiz o curso primário no Grupo Escolar de Vila Invernada, à época (1951-1954) um galpão de madeira na periferia de São Paulo. Pedagogicamente era uma escola tipicamente tradicional. Já não havia mais a palmatória, mas a régua, às vezes, desempenhava a mesma função. O diretor era uma figura temida. Os exames finais de cada série eram feitos na própria escola, mas não era a professora que formulava as questões e as aplicava. Esses exames eram feitos perante o inspetor do Estado. Hoje avalio que não fui um aluno brilhante, mas logrei aprovação sem grandes dificuldades em todas as séries. Era um menino dócil, obediente, mas muito ativo. Durante o dia, quando não estava na escola estava na rua geralmente jogando bola. No futebol das peladas de rua era chamado de “maquininha” pela rapidez com que me desvencilhava das guaxumas, driblando e conduzindo a bola até o gol do adversário. Até aí minha infância foi, pois, como a de qualquer criança pobre, semelhante, portanto, à dos filhos da maioria da população que habita este país.

 

2.Rumo a Mato Grosso: formação secundária (1955-1961)

 

            Iniciei o curso de admissão ao ginásio em 1955, na Paróquia de São Pio X e Santa Luzia, de Vila Leme, ainda em São Paulo mas, em 27 de setembro do mesmo ano, segui com o vigário da referida paróquia para Cuiabá. Ali prestei exames de admissão ao ginásio no Liceu Salesiano São Gonçalo, tendo logrado aprovação em primeiro lugar.

O curso ginasial foi feito no Seminário Nossa Senhora da Conceição, de Cuiabá, entre 1956 e 1959, período em que eram emitidos boletins mensais com as notas dos alunos e respectivas classificações. Revelei-me, no decorrer de todo o curso, um aluno dedicado e aplicado; em conseqüência, a cada mês, sem exceção, eu era invariavelmente classificado em primeiro lugar. Apenas uma vez, em 1958, na 3º série, um colega empatou comigo em 1º lugar com a média 8,8. Quando fui mostrar, como fazia todos os meses, o boletim ao padre com quem havia ido de São Paulo para Mato Grosso, ele me olhou com o semblante grave e disse: “você está relaxando e ficando displicente; o João Bosco já está te alcançando”. E apontou com o dedo a primeira nota e escorregando-o para a média geral, falou: “no próximo mês quero ver esta nota (9,5) aqui (na média final)”. Retirei-me sem nada dizer. O mês seguinte era junho, mês dos exames semestrais. Prestei exames nas onze disciplinas do currículo e, recebido o boletim, levei-o até o mencionado padre que o olhou, conferiu na média final a nota 9,8, me devolveu, virou as costas e se retirou sem dizer uma palavra.

O primeiro ano colegial foi feito em 1960, no Seminário do Coração Eucarístico de Campo Grande, hoje capital do Estado de Mato Grosso do Sul. Em 1961, de novo no Seminário Nossa Senhora da Conceição de Cuiabá, cursei o segundo ano que era também o último ano do Seminário Menor.

            Essa experiência em Mato Grosso reveste-se de um sentido contraditório. Por um lado, a violência da ruptura abrupta com tudo o que me era familiar; por outro, a riqueza de novas vivências, costumes, lugares, linguagens e até mesmo etnias que essa experiência propiciou.

            A violência da ruptura foi sentida como se eu tivesse sido arrancado, com apenas onze anos de idade, de meu habitat, projetado nas nuvens (viajei de avião) e depositado num lugar inteiramente desconhecido. As dores da separação eu as sentia fisicamente. E acreditava (ou desejava?) estar doente, imaginando que assim poderiam me mandar de volta para casa. Procurava o padre que havia viajado comigo e, soluçando quase em prantos, me queixava das dores que me queimavam as entranhas. Ele, calmamente, colocava uma colher de sal de fruta em meio copo d’água, me dava para tomar e me despachava de volta para o internato. Com certeza o sal de fruta não me curou do mal que me doía na alma; mas o tempo, este sim, se encarregou de o afastar. Cinco meses depois voltei a sentir algo semelhante, porém com intensidade muitas vezes menor. É que eu passara por uma nova separação. Havia vivido esse tempo no aspirantado salesiano, embora fosse destinado ao seminário secular que só começaria a funcionar em março de 1956. Eis que, passados cinco meses, outra vez era eu separado daqueles com os quais já me havia familiarizado de algum modo e era colocado, de novo, junto de pessoas inteiramente desconhecidas. Aquela sensação de vazio voltou a se manifestar dentro de mim, de forma branda, mas o suficiente para que só então eu viesse a descobrir a natureza do mal que me acometera. Era, simplesmente... saudade. Muitos anos mais tarde, já professor universitário, lembrava com humor dessas peripécias da infância ao receitar um remédio “infalível” para os que a mim vinham se queixar das saudades que sentiam. Dizia-lhes: “tomem sal de fruta. É tiro e queda”.

            O sentimento acima descrito com certeza terá deixado marcas indeléveis em minha vida. Com efeito, ficara três anos e três meses sem rever meus pais e irmãos. Após esse tempo consegui uma licença de doze dias. Quando ia do aeroporto para a casa em São Paulo, olhava a paisagem, as ruas, os prédios e me perguntava sem encontrar resposta: estou chegando em casa ou estou saindo? é aqui ou é lá o meu lugar? Essa sensação de desenraizamento se agravou quando cheguei em casa e tudo parecia muito diferente, muito estranho. Se tivesse me encontrado com um de meus irmãos na rua, não teria reconhecido. Talvez tenha a ver com essa experiência algumas características que adquiri como a auto-suficiência, a indiferença pelos lugares (tanto faz estar aqui como estar lá; me adapto a qualquer um sem me ligar efetivamente a nenhum).

            Por outro lado, Mato Grosso significou para mim, sem dúvida uma riqueza de situações novas: novos costumes, novas expressões de linguagem, os passeios mensais que me permitiam conhecer novos lugares, a convivência com os índios bororo e xavante.

            A vida no Seminário era de uma rotina bastante monótona. Entretanto, propiciava as condições mínimas de ambiente, hábito e disciplina para o estudo, vale dizer, para o trabalho intelectual. Levantava-se às 6:00 horas, assistia-se à missa às 6:30, às 7:00 café e, em seguida, procedia-se à limpeza das salas de aula, salões de estudo, pórticos, banheiros, refeitório, dormitórios; das 8:00 às 11:30 assistia-se às aulas; às 11:30 almoço, às 12:00, recreio com jogos, geralmente com bolas; às 13:00, hora de estudo, em silêncio, em carteiras individuais com os livros didáticos adotados nas aulas e os cadernos; às 14:30, merenda e jogos livres com as turmas se revezando no banho; às 15:30, de novo no salão de estudos; às 17:30, jantar; às 18:00, recreio com jogos de corrida; às 19:00 benção do santíssimo sacramento; às 19:30, outro horário de estudos; às 21:00, oração da noite, indo-se em seguida para o dormitório.

            Verifica-se, pelo horário acima indicado, que para pouco mais de três horas de aula (descontado o intervalo), havia cinco horas de estudo. Com isso, embora os alunos fossem recrutados nos mais distantes lugares com pouca ou nenhuma escolaridade prévia, as crianças aprendiam, sendo praticamente inexistentes a repetência e evasão. E isto, apesar da precariedade pedagógica dos métodos de ensino e da falta de preparo específico dos professores nas diferentes disciplinas do currículo. Invoco essa experiência quando penso nos CIEPs, PROFICs e CIACs que alegam combater a evasão e a repetência com escola de tempo integral, mas utilizam esse tempo para assistência social e recreação, descuidando-se do tempo necessário ao trabalho pedagógico. Ora, sem tempo e ambiente de estudo as crianças não podem aprender. Esta é uma obviedade que, no entanto, parece passar despercebida para os arautos de propostas educacionais que se proclamam ultra-avançados. A vida no seminário indica que com tempo e ambiente de estudo é possível a qualquer criança aprender, ainda que sem orientação além daquela dispensada coletivamente no horário das aulas. Ah! Se nossas escolas de tempo integral aliassem essa obviedade a uma adequada orientação pedagógica, evasão e repetência deixariam de ser problema.

            No seminário tive também oportunidade de me iniciar, de forma sistemática, naquela arte que meu pai e meus três irmãos mais velhos dominavam de forma espontânea: a música. Toquei piano, acompanhei uma opereta a quatro mãos com um colega; acompanhava ao harmônio os cantos e hinos sacros nas cerimônias religiosas; ensaiava o grupo de gregoriano para cantar nos pontificais da catedral; toquei vários instrumentos na banda e fazia a transposição das partituras para ajustá-las às diferentes tonalidades dos instrumentos musicais. Infelizmente a música acabou sendo para mim uma paixão frustrada. Não consegui atingir o nível daquela espécie de “segunda natureza” que é condição para a autonomia, liberdade, criatividade, versatilidade e virtuosidade que caracterizam o exercício dessa arte, atributos esses que detecto em meus irmãos quando têm nas mãos um violão. Depois, as lides universitárias me afastaram da prática musical, impondo até mesmo a perda daquelas habilidades limitadas que havia antes atingido.

 

3. Em Aparecida do Norte: início da formação filosófica (1962-1963)

 

            Em 1962 ingressei no Seminário Maior cujos estudos filosóficos iniciei no Seminário Central de Aparecida do Norte, Estado de São Paulo. Aí cursei dois anos de filosofia, sendo que o segundo ano coincidiu com o primeiro ano de Faculdade em decorrência do vestibular que prestei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena em fevereiro de 1963, no qual fui aprovado em primeiro lugar. Isto foi possível em decorrência de um convênio entre a Faculdade Salesiana de Lorena e o Seminário Central Filosófico de Aparecida do Norte, mediante o qual o curso de Filosofia de Aparecida passava a funcionar como uma secção da Faculdade de Lorena desde que, obviamente, os alunos interessados em cursar a Faculdade fossem aprovados nos exames vestibulares realizados em Lorena.

            Como se sabe, a orientação filosófica seguida no Seminário era a Escolástica, mais precisamente, o Tomismo. Adotavam-se os manuais da Universidade Gregoriana de Roma e de Jacques Maritain, todos eles pautados em Tomás de Aquino. Os manuais da Gregoriana eram impressos em Latim, a maioria das aulas era ministrada em Latim e as respectivas provas também deviam ser redigidas nessa língua. Mas, já no Seminário discutiam-se muito as questões sociais sob os ventos do “aggionamento” de João XXIII e do Conçilio Vaticano II. Acompanhávamos a agitação política do governo João Goulart, torcendo pelas reformas de base e pelo avanço das forças progressistas; e líamos com sofreguidão jornais alternativos como o semanário “Brasil: urgente”.

            Diferentemente do Seminário Menor onde predominava uma rotina monótona e cujo conteúdo religioso se assentava numa espiritualidade mecânica, repetitiva e superficial, em Aparecida vivia-se um clima de efervescência. A cooperativa de livros organizada pelos próprios seminaristas estava sempre bem abastecida com os últimos lançamentos das editoras, principalmente Flamboyant, Vozes, Agir, Duas Cidades, Loyola, com os textos de renovação litúrgica, as novas interpretações teológicas, as encíclicas papais, o movimento ecumênico com o decorrente diálogo entre as diferentes Igrejas e com as diversas correntes políticas. Buscava-se, pois, uma espiritualidade viva e atual. A cultura laica também tinha o seu espaço. Continuei cultivando a música com incursões ainda que menos regulares ao piano e ao harmônio; num certo momento organizamos também uma bandinha. Havia um círculo literário com um boletim e um mural por onde se divulgavam nossas poesias e contos. O cineclube, liderado por alguns colegas amantes do cinema (lembro-me de João Silvério Trevisan que depois correu o mundo como cineasta), era bastante ativo; programava regularmente sessões com os filmes mais representativos do desenvolvimento do cinema.

            No clima acima apontado de efervescente espiritualidade, fui tomado de um sentimento de urgência. Precisava queimar etapas e me situar rapidamente no quadro daquele clima. Acima de tudo era necessário definir os rumos de minha vida. As circunstâncias me haviam conduzido ao Seminário, mas eu entendia que a decisão de prosseguir nessa direção deveria decorrer de uma opção própria, lúcida, consciente e plenamente assumida, decorrente de uma motivação positiva e não apenas negativa. Vez por outra me assaltavam dúvidas radicais, existenciais. Nesse período, necessitei intensificar o tratamento de uma úlcera duodenal que me acompanhava desde 1959 e da qual só me livrei, definitivamente, em dezembro de 1969 através de cirurgia. Ao final de 1963, até para poder fazer aquela opção com o alto grau de consciência e responsabilidade que eu exigia de mim mesmo, decidi deixar o Seminário.

 

4. Na PUC-SP: formação superior (1964-1966)

 

            Em 1964 voltei a morar em São Paulo onde residia minha família. Solicitei, então, transferência para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tendo sido aceito. Como o curso de Filosofia funcionava no período da tarde e não podia estudar sem trabalhar, arrumei um emprego no Banco Bandeirantes do Comércio no horário das 7:00 às 13:00 horas, trabalhando na sessão de Câmbio. A remuneração, entretanto, era o salário mínimo. Dado que havia necessidade – e eu fazia questão – de ajudar na manutenção da casa e precisava também pagar os estudos, não sobrava para o almoço. Saía de casa às 5:30h. e retornava para jantar por volta das 22:30h., uma vez que as aulas na Faculdade iam até às 20:00h. e era preciso tomar duas conduções para ir da Universidade até minha casa. Em tais circunstâncias, quando foram abertas as inscrições para concurso no Banco do Estado de São Paulo, efetuei minha inscrição, prestei os exames e ingressei em 2 de dezembro de 1965. Com uma remuneração melhor foi possível minorar as dificuldades até então enfrentadas.

            Na PUC participei da militância estudantil, onde já se punha de forma explícita a questão do Socialismo e já se manifestava alguma influência do marxismo. O curso de filosofia ainda era dominantemente tomista, mas se fazia sentir aí uma visão mais atualizada, marcada principalmente pela influência da fenomenologia existencial.

            Em decorrência do golpe militar foi aprovada, em 9 de novembro de 1964, a lei nº 4.464 conhecida como Lei Suplicy porque articulada pelo então ministro da educação Flávio Suplicy de Lacerda. A referida lei extinguiu os órgãos de representação estudantil então existentes, criando outros atrelados à fiscalização oficial. Como nós, estudantes, não aceitamos a imposição governamental, recusamo-nos a implantar os novos órgãos. Com isso, ficamos privados das entidades de representação e dos recursos correspondentes. Para contornar essa situação definimos 1966 como o Ano de Integração de Cursos (AIC) e utilizamos os Centros de Estudos existentes em cada um dos cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como base de operação do AIC. Em conseqüência, foi constituída uma Comissão coordenadora do Ano de Integração de Cursos, composta por representantes de cada um dos cursos. Como membro dessa Comissão participei da Coordenação das atividades do AIC através das quais desenvolvemos a mobilização estudantil que antes era encabeçada pelo Centro Acadêmico, agora extinto em decorrência da Lei Suplicy. A ideologia que ainda predominava no movimento estudantil era o nacionalismo desenvolvimentista e uma de suas principais bandeiras era a união de operários, camponeses e estudantes na luta contra o imperialismo ianque.

            Sendo de uma família operária, eu vivia num bairro periférico de São Paulo. Assim, nesses conturbados anos da década de 60, enquanto meu pai e meus irmãos participavam das greves nas fábricas e nas ruas, eu participava das assembléias e passeatas estudantis.

            Em 1966 meus irmãos participaram de um concurso de música popular promovido pela rádio Marconi, gravando em fita duas músicas compostas por um deles. Uma delas, que não foi apresentada porque censurada, está transcrita abaixo:

 

MARCHA DA LIBERDADE (BRASIL COM “S”)

Letra e Música de Hermógenes Saviani

Brasileiros, avante marchemos

Para um mundo melhor que há de vir.

Se tristonhos nós hoje somos

Certamente amanhã vamos rir.

 

O que nós precisamos agora

É com muito denodo lutar.

Nossos braços jovens e fortes

O Brasil hão de reconquistar.

 

Irmãos brasileiros marchemos

Com coragem e habilidade.

Só lutando nós conseguiremos

Conquistar novamente a liberdade.

 

Camponeses, operários e estudantes

Nós lutamos por um mesmo ideal.

Nós queremos ver um Brasil com “s”

E muito mais nacional.

 

Quando isso nosso povo conseguir

Muito alegres iremos sorrir.

Muito alegres iremos sorrir.

 

            Vê-se que a letra dessa música espelha bem o momento político, assim como a situação concreta vivida pela minha família. Com efeito, éramos uma família operária mas de origem camponesa, como já foi assinalado. A aliança operário-estudantil-camponesa, tão bem retratada na música de meu irmão, refletia, então, uma bandeira das esquerdas, mas, ao mesmo tempo, correspondia à situação que vivíamos.

            Ao longo do curso de filosofia, procurei aliar a militância estudantil com o estudo sério das disciplinas que integravam o currículo. Apresentei, então, nas diferentes matérias como Ética, Estética, Filosofia da História, Filosofia do Desenvolvimento, Filosofia da Religião, História da Filosofia, Sociologia, Economia Política, trabalhos com alguma densidade de reflexão própria.

            A forma didática dominante no curso de filosofia era a exposição oral em que o professor apresentava o conteúdo, passando em revista as principais contribuições ao assunto tratado, segundo uma linha histórico-cronológica. Entretanto, por reivindicação nossa, eram introduzidas, por ocasião dos trabalhos escritos e por vezes em algum outro momento, obras fundamentais de alguns filósofos importantes. Portanto, embora esse não fosse o forte do curso, não esteve de todo ausente o contato direto com as fontes do pensamento filosófico. Hoje avalio que saímos ganhando em relação ao que já começava a se praticar na USP. Esta, por influência do estruturalismo, des-historicizou o seu curso de filosofia. Era comum, em nome da análise estrutural do discurso, o aluno, ao entrar no curso, passar o ano todo dissecando uma página de Kant, tomada em si, de forma sincrônica, inteiramente desligada do contexto em que tinha sido produzida. Com isso, o pensamento filosófico tendia a se esterilizar e os jovens, desestimulados, acabavam desistindo de o estudar. O curso que fiz, ao contrário, propiciou uma visão de conjunto do pensamento filosófico em seu desenvolvimento histórico, fertilizado por algum contato com obras clássicas. Estava constituída aí a base sobre a qual era possível aprofundar, concomitante ou posteriormente, o estudo dos principais autores e correntes filosóficas.

            Antes de eu iniciar o quarto ano, o Prof. Joel Martins que lecionava Psicologia Educacional no Curso de Pedagogia e, como membro do Departamento de Pedagogia estava preocupado com a carência de professores de Filosofia da Educação, me indagou se eu não gostaria de me especializar em Filosofia da Educação. Estava ele preocupado com o fato de que a cadeira, que estava sendo ministrada pelo Prof. Stanley Krauss, iria vagar em julho porque o referido professor voltaria ao seu país, os Estados Unidos. Dado o meu interesse, o Prof. Joel me propôs um plano de estudos e eu, de minha parte, tomei a iniciativa de me matricular, ainda que como ouvinte dado que era aluno de Filosofia, numa das opções do quarto ano de Pedagogia chamada "Questões Especiais de Educação". Numa de minhas conversas com o Prof. Joel, sobre o plano de estudos que estava seguindo, disse-lhe que às vezes me ocorria a forma em que eu daria um curso de Filosofia da Educação. Ele solicitou-me que colocasse no papel e lhe mostrasse. Apresentei-lhe, então, um plano de curso que ele considerou muito bom. E quando, de fato, em julho de 1966, a cadeira de Filosofia da Educação ficou vaga no Curso de Pedagogia, o Prof. Joel a assumiu interinamente e me indicou como monitor. A disciplina tinha uma carga horária de quatro aulas semanais das quais ele me destinou duas aulas. Quando lhe perguntei o que eu deveria fazer naquelas aulas, ele me respondeu: " vá desenvolvendo o seu plano". Passei, então, a trabalhar aquele plano de curso com os alunos do terceiro ano de Pedagogia. Foi assim que completei o meu 4º ano de Filosofia, já me iniciando no magistério de Filosofia da Educação.

 

5. Início do magistério e conclusão do doutorado (1967-1971)

 

            A partir de 1967, iniciei oficialmente minha atividade docente simultaneamente no curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde assumi a cadeira de Fundamentos Filosóficos da Educação, e no Ensino Médio, ministrando a disciplina Filosofia para os então cursos clássico e científico no Colégio Estadual de São João Clímaco, depois denominado Colégio Estadual Prof. Ataliba de Oliveira. No segundo semestre do mesmo ano, ministrei a disciplina História e Filosofia da Educação para o Curso Normal do Colégio Sion. Nesse ano, em razão do pequeno número de aulas, tive que manter o trabalho no Banco do Estado de São Paulo, por uma questão de sobrevivência. Em 1968, aumentadas as aulas, demiti-me do Banco para me dedicar integralmente ao magistério. Em 1970, em conseqüência de aprovação em concurso público, assumi, como efetivo, a cadeira de Filosofia do Colégio e Escola Normal Estadual "Plínio Barreto", em São Paulo, Capital.

            Iniciei a carreira de professor com muito entusiasmo e dedicação. Especialmente no nível universitário, eu considerava que o professor não poderia ser apenas um repetidor, um transmissor de conhecimentos já compendiados; ele deveria ser também e sobretudo um pesquisador, um criador, alguém que se posicionasse ativamente em relação à sua área, tendo condições de contribuir para o seu desenvolvimento.

            Em conseqüência, passei a produzir eu próprio aquilo que chamei de " textos de apoio para seminários" , a partir dos quais se desenvolviam as aulas, estimulando-se o trabalho intelectual e a reflexão crítica dos alunos.

            Para a cadeira de Fundamentos Filosóficos da Educação preparei sete textos, respectivamente, sobre o Idealismo, Vitalismo, Pragmatismo, Historicismo, Néo-Positivismo, Fenomenologia e Existencialismo como base para o estudo das correntes filosóficas contemporâneas e suas implicações educacionais.

            A disciplina Fundamentos Filosóficos da Educação era ministrada no segundo ano de Pedagogia e tinha um caráter preparatório para a disciplina Filosofia da Educação, ministrada no terceiro ano e que também ficou sob minha responsabilidade a partir de 1968.

            Na cadeira de Filosofia da Educação me propus a aplicar a reflexão filosófica à problemática educativa do homem brasileiro. Para tanto, elaborei um texto-base chamado "Análise da Estrutura do Homem", a partir do qual construí nove textos denominados "Elementos para a Análise do Homem Brasileiro", abordando os seguintes aspectos: "a priori" físico (um texto); "a priori" biológico (um texto); "a priori" psicológico (dois textos) e "a priori" cultural (cinco textos, versando, respectivamente, sobre as perspectivas autropológica, histórica, sociológica, econômica e política). O curso se completava com um texto que denominei "Esboço de Formulação de uma Ideologia Educacional para o Brasil", onde abordava o problema dos objetivos e meios da educação brasileira.

            Os dezoito textos acima mencionados continuam até hoje inéditos. Todavia, não abandonei ainda a idéia de retomá-los e reescrevê-los de modo que, libertando-se de minha presença em sala de aula - já que foram pensados inicialmente como instrumentos do meu trabalho com os alunos - se transformem num material didático que possa auxiliar os professores a desenvolverem seus próprios cursos, beneficiando-se, assim, da rica e estimulante experiência por mim vivida. Apenas a falta de tempo impediu, até agora, que eu realizasse este projeto.

            Em 1971 integrei a equipe que montou a disciplina Introdução à Educação para o recém instalado Ciclo Básico de Ciências Humanas e Educação da PUC-SP, ficando responsável por três unidades para as quais redigi três textos denominados “Dimensão Filosófica da Educação”, “Valores e Objetivos na Educação” e “Para uma Pedagogia Coerente e Eficaz”, sendo que este último texto alimentava a unidade que sintetizava os trabalhos e a proposta da referida disciplina.

            Em minha carreira docente procurei, na medida do possível, articular organicamente teoria e prática como forma concreta de realizar a tão propalada indissociabilidade entre ensino e pesquisa.

            Assim é que os textos de apoio para seminários elaborados para a cadeira de filosofia da educação procuravam responder a uma carência detectada na militância estudantil, no que diz respeito ao conhecimento da realidade brasileira, carência essa que fazia com que o movimento estudantil ficasse marcando passo em torno de palavras de ordem que resultavam abstratas em face da situação real em que se procurava agir. Por isso, em março de 1967, comuniquei aos colegas da Ação Popular (AP) o meu desligamento do movimento estudantil, justificando-o não apenas pelo fato de que, uma vez formado, eu deixava de ser estudante, mas principalmente porque me parecia que daquela maneira não era possível avançar, uma vez que não compreendíamos satisfatoriamente a realidade sobre a qual queríamos atuar. Em conseqüência, urgia assumir a tarefa – e eu me propunha a enfrentar esse desafio – de se debruçar sobre as questões da nossa realidade, tentando atingir um certo nível teórico de aprofundamento que permitisse compreendê-las adequadamente.

            Igualmente, minha primeira contestação pedagógica a Dewey surgiu da tentativa, no 2º semestre de 1967, de aplicar no Colégio Sion a mesma atitude pedagógica baseada no princípio de liberdade, do qual decorre a responsabilidade, que havia adotado com êxito no Colégio da periferia. No Sion essa orientação fracassou, tendo eu que revê-la, o que fiz invertendo os termos, isto é, condicionando a liberdade à responsabilidade, o que implicava pôr o acento no princípio  ético do dever. Ao tentar compreender o problema desenvolvi uma reflexão, cujas implicações e conseqüências não cabem, infelizmente, nos limites deste Memorial. Em síntese, pareceu-me que os alunos da periferia , cujas condições sociais impunham uma vida mais de constrições e imposições do que de opções; mais de deveres do que de direitos, com obrigações que, se não cumpridas, acarretavam conseqüências muitos concretas, esses alunos valorizavam extremamente minha proposta pedagógica. Já as meninas do Sion, cuja situação social, ao contrário, propiciava mais opções que imposições; mais direitos que deveres, não estando as transgressões às normas vigentes sujeitas a conseqüências mais graves, estas alunas deram de ombros para o encaminhamento pedagógico por mim utilizado no início das aulas. Bastou, entretanto, eu “ virar a mesa” mostrando-lhes que eu estava levando a sério o meu papel de professor, para que elas passassem a me respeitar, instaurando comigo uma relação pedagógica estimulante e produtiva. Concluí, então, que o papel da escola não é apenas e nem predominantemente o de organizar as experiências propiciadas pela vida dos próprios alunos. Pareceu-me que o papel da escola é, antes, o de patentear aquilo que a experiência de vida dos alunos esconde.

            Nesse mesmo quadro menciono também que a elaboração das diferenças conceituais entre as noções de “filosofia”, ”filosofia de vida” e “ideologia” registradas no texto “A filosofia na formação do educador” ocorreu como resposta a uma questão determinada detectada em conseqüência de minha intensa participação no movimento de 1968, quando a PUC-SP, a exemplo das principais universidades, foi tomada pelos alunos no mês de junho, ficando sob seu controle durante todo o 2º semestre daquele ano. Ao longo desse período, pude constatar como afloravam contradições na prática dos alunos, acarretando incoerências entre seus propósitos e suas ações. A hipótese de um conflito entre a concepção decorrente de suas condições de vida (“filosofia de vida”) e sua opção político-ideológica  (“ideologia”) como explicação para as contradições constatadas, conduziu-me à reflexão que resultou naquela elaboração conceitual em que a questão passa a ser compreendida num nível teórico de alcance mais amplo.

            Cabe dizer, por fim, que também minha proposta de doutorado, centrada no problema da ausência de sistema educacional no Brasil, se inscreve no âmbito dessas preocupações. Paralelamente às atividades docentes, iniciei formalmente, a partir de fevereiro de 1968, as pesquisas relativas ao doutoramento, pesquisas essas que resultaram na tese “ O conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, defendida em 18 de novembro de 1971 e publicada em livro com o título “ Educação Brasileira: estrutura e sistema”, em 1973, estando atualmente na sétima edição.

            No espírito desse memorial, importa registrar que o enunciado acima corresponde à tese explícita, pública e manifesta. Embutida nela, entretanto, eu estava querendo defender (demonstrar) uma outra tese, esta implícita, particular e oculta. Trata-se da tese de que era possível produzir academicamente nas condições precárias da situação brasileira em que vivíamos. Com efeito, parecia-me que, se fossem requeridas condições diversas, vale dizer, excepcionais, para a produção acadêmica, isto significaria que, retornando à situação real que é aquela do dia-a-dia, a que prevalecia em nossas instituições, já não se produziria mais. Por isso não procurei bolsa de estudos para o exterior ou no país e também não me afastei de minhas atividades docentes. Assim é que, quando fiz a revisão da literatura da tese, em 1970, eu ministrava 17 aulas semanais na universidade e 26 no Colégio Estadual. Estava em sala de aula todas as manhãs, todas as noites e às sextas-feiras, também às tardes. Obriguei-me, então, a dedicar pelo menos dezesseis horas semanais à tese (de segunda a quinta-feira à tarde), comprometendo-me a repor, num fim de semana ou feriado, caso algum dia isso não fosse cumprido em função, por exemplo, de alguma reunião de professores convocada para o período da tarde. Transferi, também, para os fins de semana as preparações de aulas e a correção de trabalhos dos alunos. Cumpri à risca esse programa e, concluída a tese, estava demonstrado que era possível produzir mesmo nessas condições. Portanto, eu tinha alguma garantia de poder continuar produzindo apesar das condições adversas.

 

6. Docência na pós-graduação; tempo integral na PUC-SP (1972-1975)

 

            A partir de 1972 passei a trabalhar também na Pós-Graduação ministrando, a nível de mestrado, a disciplina "Problemas da Educação" nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia da Educação da Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Organizei o plano da disciplina centrado em seis problemas selecionados de acordo com dois critérios (potencial existencial e alcance teórico) e trabalhados em três níveis: constatação, caracterização e tentativa de solução. O primeiro nível punha em evidência o potencial existencial, sendo desenvolvido a partir das experiências dos próprios alunos que procuravam constatar em sua prática a incidência do problema proposto. O segundo nível fazia intervir a exigência teórica, operando-se a caracterização do problema com o auxílio de textos, de modo a se atingir uma compreensão consistente e fundamentada do problema examinado. O terceiro nível trazia em seu bojo o problema seguinte. Assim, a tentativa de solução do problema 1 colocava a exigência de se examinar o problema no 2 que era, então, formulado, constatado, caracterizado e assim sucessivamente até o problema nº 6 que tinha caráter sintético, completando o programa da disciplina. Vê-se, portanto, que os seis problemas se articulavam dialeticamente entre si, constituindo uma totalidade orgânica. Também essa experiência foi muito estimulante e pretendo, quando as condições de tempo me permitirem, consolidá-la em livro.

            Em março de 1973 passei à condição de professor em tempo integral na PUC-SP, afastando-me sem vencimentos do cargo de professor efetivo do Estado, comissionado na Equipe Técnica do Livro e Material Didático da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. A partir daí minhas atribuições na pós-graduação se ampliaram. Organizei a disciplina Problemas da Educação II, pensada com caráter monográfico, tendo, pois, o objetivo de abordar, de forma aprofundada, determinado problema que poderia variar conforme o semestre em que a disciplina era oferecida. Comecei, também, a assumir sistematicamente os trabalhos de orientação de dissertações de mestrado. A primeira dessas dissertações foi defendida em 18/11/74, por coincidência, no mesmo dia em que fazia três anos que eu havia defendido minha tese de doutorado.

 

7. Em São Carlos; alguma experiência internacional; de novo em tempo integral na PUC-SP (1975-1978)

 

            Do segundo semestre de 1975 a março de 1978 trabalhei na Universidade Federal de São Carlos (UFScar), onde fui contratado como professor titular. Ali integrei a equipe que formulou o projeto do curso de pós-graduação em educação, o qual foi implantado e começou a funcionar em março de 1976, sob minha coordenação, em convênio com a Fundação Carlos Chagas. A par da importante experiência de administração acadêmica, ministrei no Programa as disciplinas Problemas da Educação Brasileira, Fundamentos de Filosofia e Metodologia da Ciência, Filosofia da Educação e Forum de Debates.

            A disciplina Problemas da Educação Brasileira era, na verdade, uma adaptação de Problemas da Educação I que ministrava na PUC-SP.

            Fundamentos de Filosofia e Metodologia da Ciência foi proposta como disciplina básica, necessária tendo em vista que uma das duas áreas de concentração do Programa era Pesquisa Educacional. Seu escopo era fornecer aos alunos os elementos críticos e as informações para um posicionamento em face aos caminhos do pensamento humano na busca de conhecimentos. Defini como objetivos: 1. discutir as condições de possibilidade, legitimidade, valor e limites do conhecimento científico; 2. Compreender criticamente os produtos e processos científicos; 3. Oferecer subsídios para uma assimilação crítica dos procedimentos científicos ao nível do conhecimento e da prática educacionais. Após uma introdução versando sobre a consciência da ciência e o conhecimento e suas formas, discutiam-se os fundamentos lógicos, psicológicos e sociais da atividade científica e se concluía com o problema da definição de pesquisa científica e o tema relativo aos instrumentos e interpretação dos resultados da pesquisa. O conteúdo se apoiava numa ampla bibliografia de filosofia da ciência que incluía autores como Bachelard, Bunge, Farrington, Feyereband, Godelier, Goldman, Hempel, Kopnin, Kuhn, Nagel, Piaget, Popper, Quine, Rudner, Bertrand Russel, Simpson e Wittgenstein.

            Filosofia da Educação abordava as principais concepções no âmbito da disciplina, com base numa sistematização e classificação que eu havia elaborado como quatro teórico para a pesquisa sobre tendências e correntes da educação brasileira que eu estava desenvolvendo com apoio do INEP.

            Forum de Debates constituiu uma inovação muito estimulante. Envolvia a participação de especialistas externos convidados segundo a temática em foco, a qual era variável. O primeiro forum que organizei versou sobre o tema " estatuto teórico da educação" abordado sob os enfoques filosófico, histórico, psicológico e sociológico, portanto, com quatro convidados externos. O esquema de funcionamento era o seguinte: na primeira semana eu trabalhava com os alunos o tema escolhido, fazendo uma abordagem de conjunto e situando o âmbito dos diferentes enfoques. Na Segunda semana vinha o primeiro convidado, fazia a sua exposição, debatia preliminarmente e deixava comigo uma bibliografia para ser estudada pelos alunos sob minha orientação nas duas semanas seguintes. Na Quinta semana vinha o segundo convidado e seguia-se o mesmo procedimento até o quarto e último convidado. Na décima quarta semana ocorria uma mesa redonda com a participação dos quatro convidados, procedendo-se a um amplo debate sobre o tema. Na última semana eu fazia, com os alunos, um balanço das atividades desenvolvidas. O segundo Forum de Debates que organizei foi sobre educação popular, o qual se realizou de acordo com a mesma sistemática acima descrita.

            A convite do Institut d´Étude du Développement Économique et Social (IEDES), Université de Paris I (Sorbonne), viajei a Paris em 2 de dezembro de 1977 para realizar estágio de pesquisa. Na Europa, aproveitei a oportunidade para realizar, também, um estágio de pesquisa no "Istituto Gramsci", em Roma, no mês de janeiro de 1978. Retornei à Europa em setembro de 1979, desta vez para intercâmbio acadêmico nas seguintes instituições da Alemanha Ocidental: Pädagogische Hochschule/Universidade de Colônia, Pädagogische Hochschule/Universidade de Münster, Lateinamerica Institut de Berlim e Deutsches Institut für Pädagogische Forschung de Frankfurt.

            A partir de abril de 1978 reassumi meu contrato em tempo integral na PUC São Paulo, desenvolvendo trabalhos nos Programas de Mestrado em Filosofia da Educação e Doutorado em Educação (criado em 1977), os quais passei a coordenar a partir de agosto do mesmo ano.

Na coordenação de Mestrado procedi à sua reorganização de modo a imprimir-lhe maior ordenação e organicidade. Em consequenciaconseqüência, assumi a cadeira de Filosofia da Educação que, como disciplina central do programa, passou a ter o sentido de garantir aos alunos uma visão sistematizada das diferentes concepções de filosofia da educação, através da compreensão e discussão do estado de desenvolvimento teórico da área.

Na coordenação do Doutorado, busquei consolidá-lo, destacando-se, para tanto, a implantação das Atividades Programadas através das quais passei a coordenar um rico processo de discussão coletiva dos projetos e da elaboração das teses, processo esse que acabou se constituindo na garantia da alta produtividade, tanto em quantidade como em qualidade atingida pelo Programa, realização sem precedentes na história dos nossos cursos de pós-graduação em educação.

Em decorrência de Convênio celebrado entre o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Educação da PUC-SP e o Programa de Educação da FLASCO (Facultad Latinoamericana de Ciências Sociales) de Buenos Aires, ministrei nesta cidade, no segundo semestre de 1982, como professor visitante, a disciplina Teoría de la Educación. Voltei a ministrá-la por mais duas vezes, em 1983 e 1985.

 8. Ainda na PUC-SP, mas também na UNICAMP: a organização do campo educacional (1978-1988)

 

             O final da década de 70 é marcado por uma grande efervescência no campo educacional. A partir de Campinas (UNICAMP) funda-se o CEDES (Centro de Estudos Educação e Sociedade) que passa a editar a Revista Educação e Sociedade e que promove, em 1978, o I Seminário sobre Educação Brasileira. É organizada a ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) que realiza, também em 1978, sua primeira Reunião Anual. Em 1979, funda-se a ANDE (Associação Nacional de Educação) que, a partir do ano seguinte começa a editar a Revista do mesmo nome. Ao mesmo tempo, procuramos articular o CEDEC (Centro de Estudos da Cultura Contemporânea), entidade também recém-criada, com o processo de organização do campo educacional. Participei da criação dessas quatro entidades, sendo sócio-fundador de todas elas. Nesse processo teve papel destacado o grupo de doutorandos que eu orientava na PUC-SP. Nessas circunstâncias, fui guindado à condição de uma espécie de liderança natural de todo esse movimento de âmbito nacional, ao lado de alguns colegas.

            Num grande esforço de articulação, as quatro entidades mencionadas se unem para organizar a I Conferência Nacional de Educação – CBE. O evento ocorre na PUC-SP, de 31/03 a 03/04 de 1980. Constatados os laços tênues do CEDEC com o campo educacional organizado, este órgão não se sente em condições de continuar participando da organização das CBEs e, embora comungando com os objetivos e hipotecando total apoio à iniciativa, se retira de sua organização. As outras três entidades, porém, continuam organizando essas conferências, cuja 6º edição ocorreu no início de setembro de 1991.

            As CBEs constituíram um importante forum de circulação de idéias, apresentação e divulgação dos trabalhos da área, debate das questões candentes, em especial no âmbito da política educacional. Participei de todas elas, com exceção da IV, realizada em 1986, porque coincidiu com a minha participação em Seminário da Organização dos Estados Americanos em Washington.

            Nesse período de grande mobilização, intensificam-se minhas atividades no âmbito da chamada terceira função da universidade: a extensão. Sou convidado, instado e pressionado a participar dos mais diferentes tipos de evento: Congressos, Seminários, Simpósios, Painéis, Mesas redondas, Conferências, Assessorias, Reuniões Científicas em praticamente todos os Estados do país e em diferentes tipos de instituições. As solicitações de textos, artigos, entrevistas, transcrições de palestras, comunicações e certos temas tratados em aula me levam à decisão de organizar meus escritos, publicando-os na forma de livro.

            Assim é que, em 1980, publico o livro: “Educação: do senso comum à consciência filosófica”, reunindo alguns ensaios introdutórios à filosofia da educação, estudos sobre aspectos organizacionais do trabalho pedagógico e alguns textos sobre a educação brasileira. Atualmente esse livro se encontra na décima segunda edição.

            Em setembro de 1983 publiquei o livro “Escola e Democracia”, tratando, em diferentes registros, das teorias da educação e das relações entre educação e política, livro este que já atingiu a trigésima primeira edição.

            Em 1984 saiu o livro “Ensino público e algumas falas sobre universidade” que está hoje na Quinta edição.

            O livro “Política e Educação no Brasil”, resultante da tese de livre-docência, foi publicado em 1987 e se encontra na terceira edição. Seu objeto é o significado político da ação do Congresso Nacional na Legislação do Ensino.

            Em 1980 ingressei na UNICAMP onde, além de História da Educação II no curso de pedagogia, ministrei no Programa de Pós-Graduação em Educação as disciplinas Tópicos Especiais em Filosofia da Educação, Tópicos Especiais em História da Educação, Evolução da Educação Brasileira, História da Cultura Brasileira, História das Doutrinas Pedagógicas, Seminário Avançado em História da Educação, História das Idéias Pedagógicas no Brasil e Metodologia da História.

            Em 1986 fui aprovado em Concurso Público de Livre-Docência na disciplina História da Educação da UNICAMP, com a média 9,9, tendo defendido a tese “O Congresso Nacional e a Educação Brasileira”.

            Nesse mesmo ano de 1986, em agosto, participei, a convite da OEA, do Seminário Interamericano sobre Educação, Desenvolvimento e Democracia, realizado em Washington, D.C. – U.S.A Aí apresentei trabalho sobre o tema “Educação para a participação no processo político: escola, cidadania e transição democrática”, depois publicado no nº 100 da revista Educación, da OEA.

            Em fevereiro de 1987, a convite da Universidad de la República, ministrei em Montevidéo dois cursos intensivos sobre “Correntes Pedagógicos Contemporâneas” e “Principais Correntes Pedagógicas e sua Aplicabilidade à Realidade Nacional” e proferi conferência sobre o tema “Realidade e Perspectiva da Educação no Contexto latino-Americano”. Por ocasião desta minha estada no Uruguai, descobri o enorme interesse que meus trabalhos têm suscitado naquele país. Constatei, com efeito, que dois artigos meus já haviam sido publicados pela Revista Educación del Pueblo, estando prevista a publicação de um terceiro, o que de fato veio a ocorrer em julho de 1987. Nessa ocasião, foram feitos contatos visando à tradução e publicação de meu livro Escola de Democracia, o que acabou por se efetivar através da Editora Monte Sexto de Montevidéo, em 1988. Concedi, ainda, várias entrevistas a órgãos de imprensa como o Semanário La Hora, o jornal El Popular, a Tribuna de Estudios Juveniles, além de uma publicação denominada Teoría de la Educación. Do Uruguai viajei à Argentina onde, a convite da Universidad Nacional de Luján, participei do "Encuentro de Departamentos, Escuelas y Facultades de Ciencias de la Educación de Universidades Nacionales", fazendo uma exposição sobre "Los Post-grados en Brasil". Ainda na Argentina, proferi conferência sobre o tema "A pedagogia e os interesses da classe trabalhadora" na casa Universitária Anibal Ponce, em Buenos Aires.

            O período considerado , além de ser marcado pelo amadurecimento e plenificação profissional, contempla também dois acontecimentos do maior significado pessoal. Em seu centro, não apenas cronológico, mas também existencial, situa-se o meu casamento, em julho de 1984, com Maria Aparecida Dellinghausen Motta, filósofa e poeta de rara sensibilidade, pessoa maravilhosa sob todos os aspectos. E coroando essa década deu-se o nascimento, em novembro de 1988, de meu filho Benjamin Motta Saviani, "terrivelmente simpático" como o classificou uma professora do Rio Grande do Norte, então minha aluna do doutorado. Ele é, de fato, o que seu nome significa: filho da felicidade. Vê-lo desabrochar, acompanhar diuturnamente o desenvolvimento pleno de suas potencialidades é, sem dúvida, uma alegria indescritível e a maior recompensa que poderia esperar alguém que escolheu a educação como ocupação e preocupação centrais de toda a sua vida.

 9. Na UNICAMP, em RDIDP (1989-1992)

 

             A partir de janeiro de 1989 passei para o regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa na UNICAMP, tornando-me coordenador de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, função para a qual fui eleito em abril de 1989 e reeleito em abril de 1991. Em conseqüência, atuei como membro da Comissão Central de Pós-Graduação da UNICAMP, da Congregação, da Comissão de Ensino e Pesquisa e do Conselho Interdepartamental da Faculdade de Educação, além de presidir a Comissão de Pós-Graduação da referida Faculdade. Como coordenador de pós-graduação elaborei a proposta do novo Regulamento do Programa e coordenei sua discussão e aprovação, assim como sua implantação.

            Em novembro de 1990 fui aprovado com média 10 no concurso público de Professor Adjunto na disciplina História da Educação da UNICAMP.

            No período em epígrafe desenvolvi as seguintes atividades docentes:

            No curso de pedagogia lecionei História da Educação II (1º semestre de 1991) e História da Educação I para o período noturno (1º semestre de 1992). No Programa de Pós-Graduação em Educação lecionei História das Idéias Pedagógicas no Brasil (1º semestre de 1989), Tópicos Especiais em História da Educação para o doutorado (2º semestre de 1989), Ciência, Tecnologia e Educação: Fundamentos Filosóficos, em colaboração (1º semestre de 1990), Tendências Teóricas da Educação Atual (em conjunto com o Prof. Silvio Gamboa) no âmbito do Convênio entre a Universidade Estadual de Maringá e a UNICAMP (1º semestre de 1990), Ideologia e História da Educação para o doutorado (2º semestre de 1990), Questões Teóricas de História da Educação para o doutorado (1º semestre de 1991) e Metodologia da História (2º semestre de 1991).

            Em razão dos problemas por que passa o mestrado no Brasil, fui levado a organizar um Seminário sobre a concepção de dissertação de mestrado para o qual elaborei um texto gerador denominado "Concepção de Dissertação de Mestrado Centrada na Idéia de Monografia de Base". O Seminário foi realizado nos dias 08 e 09 de abril de 1991 e contou com a participação, através da mediação da ANPEd, de todos os coordenadores de pós-graduação em educação do país. Na seqüência desse Seminário realizou-se, nos dias 10, 11 e 12 de abril, por iniciativa da ANPEd e com a minha colaboração, a Reunião Técnica Nacional sobre política de pós-graduação e pesquisa.

            Visando a incrementar e sistematizar os estudos na área de História da Educação a nível nacional constituí, a partir de meus orientandos de doutorado na UNICAMP, o Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil", que conta com membros atuando em quase todos os Estados da Federação. Dando início às suas atividades, organizei um seminário sobre as perspectivas metodológicas da investigação em História da Educação, o qual se realizou em duas etapas: a primeira em maio de 1991 e a segunda em setembro do mesmo ano. Como resultado do Seminário, o Grupo elaborou um amplo programa de investigações cuja primeira etapa se consubstanciou no projeto "Levantamento e Catalogação de Fontes Primárias e Secundárias da Educação Brasileira" para cuja discussão organizei um outro Seminário realizado de 06 a 08 de abril de 1992, com apoio do INEP.

            Concomitantemente a essas iniciativas, publiquei os livros "Sobre a concepção de Politecnica" em 1989, "Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações" em 1991, "Educación: temas de actualidad" também em 1991 e " Educação e questões da atualidade", versão original do livro anterior, em 1992, além de artigos em diversos periódicos.

            Em outubro de 1991 participei, como expositor, na Universidad de la República, em Montevidéo, do Seminário "Universidad: los desafios de la modernización".

            Em abril de 1992 fui indicado para o cargo de Diretor Associado da Faculdade de Educação.

            Acredito que minha produção científica, ao longo desses anos, é testemunha de que o entusiasmo e dedicação com que iniciei a carreira docente se mantém vivos ainda hoje.

            Com efeito, concomitantemente ao exercício do magistério, concluí quinze projetos de pesquisa, publiquei dez livros individualmente, vinte livros em colaboração com outros autores, mais de cem artigos e vinte e um prefácios a livros sobre educação. Orientei quarenta e duas teses de doutorado e trinta e cinco dissertações de mestrado. Participei de numerosas bancas de defesa de tese, de concuros, de exames de qualificação e proferi em torno de três centenas de conferências sobre educação em quase todos os Estados do país. Ministrei cursos de pós-graduação como professor visitante em várias universidades federais, além da Universidade de São Paulo onde lecionei a disciplina Filosofia da Ciência no Programa de Doutorado em Enfermagem. Integrei o Comitê Assessor do CNPq, bem como os corpos de assessores da FAPESP, CAPES, INEP FAEP-UNICAMP, emitindo pareceres técnicos no campo da educação. Fiz parte dos Conselhos Editoriais das Revistas "Cadernos de Pesquisa", "Educação & Sociedade" e "ANDE", bem como da Editora Autores Associados da qual fui Diretor Executivo, além de integrar os Conselhos de Colaboradores da "Revista de Educação AEC" e da Revista "Educação Brasileira". Participei ativamente da dinamização da comunidade científica dos educadores, sendo sócio-fundador da ANPEd (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação), CEDES (Centro de Estudos Educação & Sociedade), ANDE (Associação Nacional de Educação) e CEDEC (Centro de Estudos da Cultura Contemporânea). De agosto de 1984 a julho de 1987 fui membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, onde relatei mais de cem processos emitindo os respectivos pareceres.

            Atualmente prossigo com minhas atividades de docência, orientação de dissertações e teses, assim como de pesquisa, desenvolvendo os projetos “História das Idéias Pedagógicas no Brasil”, “Pedagogia Histórico-Crítica” e o projeto integrado sobre “Levantamento e Catalogação de Fontes Primárias e Secundárias da Educação Brasileira”, por Estados, o qual se situa na linha de pesquisa “História, Sociedade e Educação no Brasil”. Além disso, desenvolvo as atividades administrativas inerentes ao cargo de Diretor Associado da Faculdade de Educação da UNICAMP.