TEXTO DAS RESPOSTAS PARA A ENTREVISTA DE ROSINA DUARTE
 

1. No último relatório do Programa das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Brasil aparece como campeão em repetência escolar. Isso é um sintoma do agravamento da situação educacional Brasileira?

R. Certamente, este é um dos muitos indícios da gravidade da situação educacional brasileira, independentemente de ter havido um agravamento ou não. Com efeito, mesmo que tenha havido alguma melhora, os dados mostram que a situação é muito grave.
 

2. Existe realmente esta “cultura da repetência” que o ministro da educação Paulo Renato alega existir?

R. Não considero apropriada a expressão “cultura da repetência”. A palavra “cultura” remete à noção de “sistema de valores”, como se pode observar na definição clássica de cultura que a considera como os modos de pensar, agir e sentir de um povo. Ora, nesse contexto, cultura da repetência estaria significando que a repetência é tida como um valor positivo levando os professores a considerar que reprovar é bom, isto é, o bom professor é aquele que reprova. Admitidas as exceções de praxe, entendo que não é esse o sentimento dominante entre os professores. Afinal, há cerca de 70 anos (recorde-se o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova lançado em 1932) vem sendo execrada a figura do professor tradicional, autoritário, aquele que estaria sempre de algum modo predisposto a lançar mão do instrumento da reprovação para se impor diante dos alunos. Nessas circunstâncias, o recurso à expressão “cultura da repetência” não passa de uma maneira de mascarar as condições precárias a que estão relegadas as escolas públicas, condições essas que impedem os professores de ensinar e os alunos de aprender, levando aos altos índices de repetência apurados pelas pesquisas. Não é, pois, por acaso que a referida expressão freqüenta, geralmente, o discurso dos governantes que têm sob seu encargo a formulação e execução da política educacional. Mascarando as razões reais da repetência com a alegada “cultura da repetência”, eles elidem, assim, a própria responsabilidade diante dessa situação. Assumindo uma diretriz política que comprime cada vez mais os investimentos em educação, o que agrava as suas condições precárias, eles tentam jogar para os professores e para a própria população a responsabilidade por esse estado de coisas.
 

3. O que significa para uma criança ou adolescente – em especial uma crianças carente, estudante da rede pública e sem estímulo cultural em casa  - a repetição de uma ou mais séries? O reflexos a repetência  na sua vida escolar, profissional e afetiva podem ser medidos ou analisados?

R. Para as crianças e adolescentes, assim como para as suas famílias, a repetência configura, objetivamente, uma situação dramática. Utilizei o advérbio “objetivamente” porque, ainda que do ponto de vista subjetivo se encontrem maneiras de conviver com essa situação racionalizando-a, por assim dizer, por meio de uma concepção traduzida em frases como “não dá para o estudo”, “não tem cabeça boa”, etc., os reflexos na situação dessas famílias são muito sérios porque lhes retira a expectativa de melhoria de vida o que significa, na prática, a cassação do seu futuro. Entretanto, para lá dos aspectos subjetivos e objetivos das famílias individualmente consideradas, os reflexos são da maior gravidade para o próprio país, tendo em vista a quantidade de talentos promissores que deixam de ser desenvolvidos. De fato, o país que não desenvolve as novas gerações, isto é, que não propicia à sua população de crianças e jovens uma formação adequada, está cassando o próprio futuro.
 

4. O ministro Paulo Renato defende a promoção automática como solução para reduzir com a repetência. O senhor acha que isso é solução? Por que?

R. Definitivamente, a promoção automática não é solução para o problema da repetência. Isto porque, como se infere da própria denominação, a passagem é automática, isto é, os alunos são promovidos independentemente do que fizeram ou deixaram de fazer. Ou seja, quer se tenha atingido os objetivos quer não, tenham ou não preenchido os requisitos, a aprovação irá ocorrer. Deixa de ser relevante, assim, o desempenho tanto dos alunos como dos professores. Coisa diversa é o empenho em se atingir a meta da “repetência zero”, vale dizer, o objetivo de que todos sejam promovidos. Aqui se trata de criar as condições para que todos os alunos atinjam os objetivos definidos para os diversos componentes curriculares que integram o processo de ensino-aprendizagem. Em verdade, a defesa da promoção automática se liga mais ao objetivo de melhorar as estatísticas dos serviços educacionais do que ao objetivo de garantir a qualidade do ensino. Com efeito, tenho observado que os atuais responsáveis pela política educacional parecem mais preocupados em melhorar as estatísticas educacionais do que em melhorar a qualidade das escolas. Assim, se se adotasse imediatamente a promoção automática, os índices de repetência tenderiam a cair para zero e estatisticamente o problema estaria resolvido. No entanto, nem por isso a situação das escolas se alteraria, permanecendo o mesmo quadro de deficiências e precariedades que se associam, hoje, aos altos índices de repetência. O que precisa ser feito é equipar adequadamente as escolas e instituir uma carreira digna para o corpo docente como fizeram os países que, a partir do final do século passado, implantaram os seus sistemas nacionais de ensino, universalizando o ensino fundamental e, em conseqüência, erradicando o analfabetismo. Em condições adequadas o normal é que as crianças aprendam sendo, portanto, promovidas. Assim, resolve-se o problema da repetência porque as crianças, de fato, aprendem e não porque se decretou a promoção automática.
 

5. A mesma pesquisa da Unesco dá uma boa notícia: a expectativa de permanência na escola aumentou de 10 para 12,7 anos de 1991 para 1997. Isso é significativo? Pode ser considerado um sinal de recuperação do ensino brasileiro?

R. O dado, em si, é um sinal positivo. Entretanto, precisamos estar atentos para verificar se isso corresponde a um efetivo aumento da aprendizagem ou se se trata, como se apontou na questão anterior, de uma simples melhoria estatística. Em verdade, assim como a promoção sem que tenha ocorrido um progresso nos estudos não resolve o problema da repetência, a permanência por mais tempo nas escolas sem que as crianças aprendam mais, não resolve o problema da formação das novas gerações que é a razão de ser das escolas.
 
 

6. Ainda mencionando a pesquisa, os dados deixam claro que o Brasil gasta 12 vezes mais no Ensino Superior do que no Ensino Fundamental. Isso não seria uma inversão de valores em um país com tanta carência de educação básica?

R. Decididamente, afirmar que “o Brasil gasta 12 vezes mais no Ensino Superior do que no Ensino Fundamental” é uma falácia que serve aos detratores do ensino superior público que buscam, com esse tipo de dado, justificar a retirada do Estado do financiamento das universidades públicas. Não tenho em mãos o relatório da UNESCO e, por isso, não posso verificar como apareceu esse tipo de dado. Talvez ele se refira aos gastos do governo federal onde, aproximadamente, 75% dos recursos se destinam ao ensino superior sendo que, do restante, a maior parte se destina às escolas técnicas de nível médio. Portanto, sobra muito pouco para o ensino fundamental. Ou talvez esse tipo de dado decorra dos gastos por aluno já que, como é sabido, se se embute nos gastos com o aluno de universidade pública os recursos destinados à pesquisa e aos serviços que a universidade presta à comunidade, aí incluídos os gastos com os hospitais universitários, então o custo do aluno de universidade pública resulta muitas vezes maior do que aquele do aluno do ensino fundamental. De qualquer modo, não se trata, em hipótese alguma, de afirmar que o Brasil gasta 12 vezes mais com o ensino superior do que com o ensino fundamental. Com efeito, o Brasil, diz a Constituição, é uma República Federativa composta, portanto, do Distrito Federal e dos Estados com os respectivos Municípios. E a mesma Constituição determina que os Estados e Municípios destinarão nunca menos do que 25% e a União 18% dos respectivos orçamentos para a “manutenção e desenvolvimento do ensino”. E, pelas normas em vigor decorrentes da própria Constituição Federal e reguladas pela LDB, a manutenção e o desenvolvimento do ensino fundamental fica sob a responsabilidade dos Estados e Municípios. Em termos globais, o Brasil tem investido aproximadamente 4% do Produto Interno Bruto em educação. E mais de três quartos desse montante provêm de Estados e Municípios. Apenas para se ter uma idéia, registre-se que, segundo o IBGE, os gastos com educação em 1993 corresponderam a 3,7% do PIB, sendo a distribuição pelas três instâncias governamentais a seguinte: União, 0,3%; Estados, 1,8%; Municípios, 1,6%. Essa distribuição pode ter sofrido alguma variação mas, via de regra, a maior cota é dos Estados, em seguida os Municípios e, em último lugar, a União. Um outro exemplo ajuda a entender melhor essa questão. O Estado de São Paulo é, seguramente, o Estado que mais investe em ensino superior. No entanto, ele destina pouco mais de 9% do ICMS às suas instituições de ensino superior enquanto que, pela Constituição estadual, ele deve destinar pelo menos 30% de seu orçamento à educação. Vê-se, assim, que, de forma alguma procede a afirmação de que o Brasil gasta 12 vezes mais no ensino superior do que no ensino fundamental.
 

7. Mesmo investindo mais na universidade, ainda existem deficiências, como o baixo investimento em pesquisas. Que outros problemas cruciais enfrentam as universidade brasileiras, na sua opinião?

R. Na verdade, o grande problema das universidades brasileiras é o sucateamento a que estão sendo submetidas em função da política de redução de gastos do governo federal. Pela tradição brasileira, o ensino superior tem sido de responsabilidade prioritária da União, ficando o ensino médio com os Estados, o ensino fundamental com Estados e Municípios e a educação infantil com os Municípios. Nesse contexto, não há nada de estranho no fato de que as verbas educacionais da União sejam destinadas dominantemente  ao ensino superior. Contudo, hoje o Ministério da Educação vem tentando, através de uma propaganda maciça, convencer a sociedade de que é uma injustiça destinar a maior parte de seus recursos ao ensino superior, alegando a prioridade do ensino fundamental. No entanto, já que o próprio MEC engendrou o FUNDEF com recursos dos Estados e Municípios para garantir o financiamento do ensino fundamental, fica clara a discrepância entre as justificativas apresentadas e as razões reais que movem essa política de desinvestimento no ensino superior.
 

8. A erosão dos parâmetros educacionais brasileiros começou no período dos militares,  com a Reforma do Ensino,  ou é mais antiga?

R. A erosão dos parâmetros educacionais brasileiros vem de mais longe. De fato, deixando de lado o período colonial, pode-se dizer que o problema remonta à época da proclamação da Independência quando, apesar dos projetos de educação da mocidade brasileira e de instalação de um sistema completo de instrução pública, o que se conseguiu foi, em termos de educação básica, a aprovação em 15 de outubro de 1827 de uma lei prevendo a criação de escolas de primeiras letras que, nem assim, chegaram a ser implantadas sobrevindo, em 1834, o Ato Adicional à Constituição do Império que colocou o ensino primário e médio sob a responsabilidade das Províncias, desobrigando o governo central de cuidar desses níveis de ensino, a não ser no Município da Corte, ficando sob sua alçada, em âmbito nacional, o ensino superior. E no final do Império, não obstante todas as discussões e projetos tendentes, em sintonia com o espírito da época, à implantação de um sistema nacional de ensino capaz de abranger toda a população do país em idade escolar, isso não aconteceu. O advento da República reiterou a situação anterior. O ensino primário e médio continuou a cargo das antigas províncias, agora transformadas em Estados, e abdicou-se de tratar a educação como uma questão nacional. Com isso o país foi se atrasando e acumulando um déficit histórico imenso, cada vez mais difícil de ser saldado. Assim, enquanto os principais países, incluídos aqueles da América Latina, a exemplo da Argentina, Uruguai e Chile, implantaram os respectivos sistemas nacionais de ensino universalizando o ensino primário e erradicando o analfabetismo, o Brasil não fez isso. Daí o atraso em que nos encontramos.
 

9. Qual a sua opinião a respeito da nova lei de Diretrizes e Bases (LDB)?

R. Acompanhei a trajetória da nova LDB desde o início, sendo que o primeiro projeto apresentado na Câmara dos Deputados em dezembro de 1988 se baseou num esboço por mim redigido. Em conseqüência, logo após a promulgação da lei publiquei, no início de 1997, o livro A Nova Lei da Educação(LDB): trajetória, limites e perspectivas, Campinas, Editora Autores Associados, que hoje se encontra na 5ª edição. Aí recupero a história sinuosa com as vicissitudes do projeto de LDB até a sua conversão em lei. Em síntese, pode-se dizer que a intervenção do governo federal no Senado afastando o texto aprovado na Câmara dos Deputados e na Comissão de Educação do Senado e introduzindo, através de Darcy Ribeiro, um outro projeto ajustado ao tipo de política educacional que o MEC vem procurando implementar, frustrou os anseios da comunidade educacional fazendo-nos perder, mais uma vez, a oportunidade de traçar as coordenadas e criar os mecanismos que viabilizassem a construção de um sistema nacional de educação aberto, abrangente, sólido e adequado às necessidades e aspirações da população brasileira.
 

10. De que forma os rumos políticos do país – em especial o advento do neoliberalismo – influenciaram na educação?

R. Respondendo de forma resumida, eu diria que os rumos políticos do país, pautados na orientação que se convencionou chamar de neoliberalismo, vêm tendo um impacto negativo na educação ao subordiná-la aos mecanismos de mercado e ao predomínio do capital financeiro, forçando o país a ajustes contábeis visando ao equilíbrio das contas públicas que lhe permita o pagamento dos juros da dívida internacional, juros esses que absorvem um montante anual quase equivalente ao total dos gastos que temos com educação, o que vem provocando uma verdadeira sangria na capacidade produtiva  nacional.
 

11. Em uma entrevista que o senhor concedeu a uma revista gaúcha – Amanhã – em 1996, disse: “A educação brasileira chegou ao fundo do poço. Não é mais ma questão de qualidade social e integração social dos excluídos. É uma questão econômica”. Onde estamos agora e como podemos sair?

R. Em verdade, não disponho dessa entrevista. Talvez ela tenha sido concedida oralmente, no intervalo de uma de minhas conferências, não sabendo eu que destino tomou posteriormente. No entanto, a mesma revista AMANHÃ publicou no número 147, de outubro do ano passado, à pág. 88, uma matéria que me foi solicitada e que saiu com o título Um plano de emergência para a educação. Aí, para fazer face ao atraso em que nos encontramos, proponho a imediata duplicação do percentual do PIB investido em educação, passando dos atuais 4% para 8%, o que apenas nos colocaria no nível das nações que mais investem em educação, como é o caso dos Estados Unidos, Canadá, Noruega e Suécia que si situam na faixa entre 7,5 e 8,5%. Esses países, no entanto, não têm o déficit que temos. Portanto, a rigor, nós, para zerar o déficit, teríamos que investir muito mais. Entretanto, penso que, a partir desse esforço, teríamos chances de começar a tratar com seriedade os  problemas da educação, ganhando condições de resolvê-los efetivamente. Por essa proposta, cada instância governamental teria o dobro dos recursos de que hoje dispõe para a educação. Assim, os municípios que, por força do chamado Fundão, têm apenas 10% de seus recursos para investir em educação infantil, passariam a ter 20%. Com isso, já começa a se tornar viável a construção de uma ampla rede nacional de educação das crianças de 0 a 6 anos, mantida e gerida pelos municípios, com a orientação dos Conselhos Estaduais de Educação. Para o ensino fundamental, em lugar dos atuais 15% dos recursos de Estados e Municípios, passaríamos a ter o equivalente a 30%. Lançando mão do parágrafo único do artigo 11 da LDB, que permite aos municípios a opção de se integrar ao sistema estadual ou compor com ele um sistema único de educação básica, será possível construir, a partir dos Estados, um amplo sistema de ensino fundamental coordenado nacionalmente. No caso do ensino médio teríamos o equivalente a 20% dos recursos dos Estados, o que já permitiria que o objetivo de universalização do ensino médio, previsto pela Constituição Federal, deixasse o âmbito dos objetivos remotos para se tornar viável a médio prazo. Com efeito, cabe observar que, diferentemente do ensino fundamental que se compõe de 8 séries, o ensino médio tem apenas 3. Quanto à questão dos professores, considerando a determinação do “Fundão” de que 60% dos recursos se destinem ao corpo docente, a duplicação do percentual tornará exeqüível a meta de implementar a jornada de 40 horas em uma única escola, além de viabilizar a criação de uma espécie de PICD da Educação Básica, semelhante ao que se fez com o ensino superior, através da CAPES, viabilizando, assim, a qualificação dos professores através de bolsas de estudo para freqüentar cursos específicos nas universidades públicas de melhor qualidade. Finalmente, em relação ao ensino superior, a duplicação dos recursos permitirá à União, com o montante dos recursos atuais, consolidar as universidades federais além de manter sua rede de escolas técnicas. Os recursos adicionais, da mesma magnitude dos atuais, poderiam ser divididos em duas fatias: metade se destinaria à educação básica para que a União possa cumprir a função de apoio técnico e financeiro, suprindo as deficiências locais; a outra metade constituiria um fundo por meio do qual seriam financiados projetos que engajariam fortemente as universidades na realização das metas definidas no Plano Nacional de Educação. Essa proposta foi publicada no mencionado número da Revista AMANHÃ mas já constava do meu livro Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação, Campinas, Editora Autores Associados, cuja primeira edição data de 1998. Como registrei na Revista AMANHÃ, a implantação dessa proposta não resolverá, por si só, todos os problemas da educação brasileira. Mas estou convencido de que é somente a partir dela que a solução se tornará possível. Fora disso, todas as proclamações em favor da educação não passarão de palavras ocas e promessas enganosas, acobertadoras da falta de vontade política para enfrentar decididamente o problema.
 
 

      Campinas, 24 de março de 2000.
 
 

       Dermeval Saviani.