ENTREVISTA CONCEDIDA POR DERMEVAL SAVIANI A HELENA.HELENA DE SOUSA FREITAS,.DO JORNAL “LITERÁRIO”:
 

Literário - O que é ser professor hoje em dia (breve resumo de tarefas, emoções, entrega pessoal e profissional, flexibilidade horária e de carácter -, versatilidade, etc)?

Dermeval Saviani – O professor é antes de tudo um educador. Na verdade, pode-se dizer que ele é um educador especializado; e isto, em dois sentidos: num primeiro sentido, na medida em que seu âmbito de atuação não é a educação em geral mas a educação escolar; num segundo sentido, uma vez que, no interior da escola, os professores assumem funções que, de modo geral, decorrem de uma formação especializada. Assim, nós temos os professores das séries iniciais do ensino fundamental para cuja função requer-se uma formação especializada ligada aos processos de alfabetização e ao ensino das noções elementares da língua vernácula, da matemática, das ciências naturais e das ciências sociais (história e geografia); e temos, também, os professores das demais séries do ensino fundamental e dos graus ulteriores, isto é, o ensino médio e o ensino superior os quais, via de regra, exercem funções ligadas ao ensino das diferentes disciplinas que integram os currículos escolares. Mas, ainda que exercendo funções específicas e especializadas, eles têm em comum o fato de que desenvolvem ações ligadas à formação das novas gerações ou à qualificação das pessoas para exercerem determinadas profissões requeridas pela sociedade. São, pois, educadores.
Ora, percorrendo a história da educação vamos constatar que a trajetória do educador tem sido marcada, desde as origens, pela desvalorização social de sua profissão acompanhada, ao mesmo tempo, pela exigência, por parte da sociedade, de que ele exerça a sua atividade com extrema dedicação. Em suma, poderíamos dizer que a vida do professor sintetiza os dois sentidos contraditórios encerrados na palavra paixão como procurei assinalar no texto “Educação: paixão e compromisso” publicado em Educação em Revista,
n.31, jun/2000, pp.43-59. Com efeito, paixão significa envolvimento afetivo, amor profundo, entusiasmo muito vivo, dedicação extremada a uma causa, compromisso radical carregado de afetividade. Mas significa também padecimento, sofrimento. Ora, ser professor hoje em dia envolve esses dois significados e, parece mesmo, que a própria política governamental manifesta esse entendimento ao cobrar dos professores extrema dedicação e responsabilizando-os pelo fracasso escolar e, ao mesmo tempo, submentendo-os a condições precárias de trabalho com salários aviltantes.Importa, pois, que os professores estejam conscientes dessa situação contraditória e se disponham a organizar-se e lutar
para mudar esse estado de coisas. Com efeito, a consciência dos limites objetivos é o primeiro passo para superá-los de vez que o meio em que atuamos, ao mesmo tempo em que nos coloca limites, fornece-nos também os meios através dos quais nos cabe ultrapassar esses limites. Concluo, pois, com as mesmas palavras com que encerrei o artigo acima citado: Se a consciência dos condicionantes objetivos, ao mesmo tempo que destrói o poder fictício, constrói um poder efetivo, então resulta possível superar seja o otimismo ingênuo, seja o pessimismo também ele ingênuo, em direção àquilo que eu chamaria de entusiasmo crítico. Aí nós ganharíamos, enfim, a possibilidade de abraçar apaixonadamente a causa da educação, assumindo o compromisso de lutar pelas condições objetivas a partir das quais se converterá em verdade prática o processo de formação humana que nos trará a suprema alegria de ver, com a contribuição do nosso trabalho educativo, as crianças, todas as crianças, crescerem em graça e sabedoria diante de si mesmas e de toda a humanidade.
 

Literário - A educação é o suporte da verdadeira Democracia? Ou a Democracia depende da educação/formação? Ou, por fim, ambas são verdadeiras?

Dermeval Saviani – Em meu entender a relação entre educação e democracia se caracteriza pela dependência e influência recíprocas. Ou seja, a democracia depende da educação para o seu fortalecimento e consolidação e, vice-versa, a educação depende da democracia para o seu pleno desenvolvimento pois, em meu entender, a educação não é outra coisa senão uma relação entre pessoas livres em graus diferentes de maturação humana.
 

Literário - Uma resenha ao seu livro 'Escola e Democracia', elaborada por Ana Pires, uma professora de Camocim, no Ceará, e disponível em www.mcanet.com.br/rpires/literario/saviani.htm tem tido um elevado número de acessos. Como se sente por ter a sua obra a estudo no ensino? Qual tem sido a reacção dos estudantes a ela?

Dermeval Saviani – Realmente, para mim é um pouco surpreendente a grande aceitação que têm tido os meus trabalhos do que dão mostra as sucessivas reedições de meus livros já que não os escrevo buscando aceitação mas atendendo a uma necessidade sentida ao mesmo tempo interiormente, isto é, pessoal, e exteriormente, ou seja, social, que implica a necessidade de socializar para os demais a percepção que tenho dos problemas educacionais assim como as possíveis soluções a que tenho chegado a partir de meu trabalho pedagógico, de minhas pesquisas e de minhas reflexões. Nessa linha de preocupações tenho desenvolvido um trabalho sério e intenso e me empenhado em traduzir a minha compreensão da educação numa linguagem clara, isenta de ostentação erudita e de rebuscamento. Além disso, a necessidade de se articular teoria e prática levou-me à busca de alternativas, traduzidas na concepção que denominei de pedagogia histórico-crítica cuja marca se define pela tentativa de superar tanto os limites das “pedagogias não-críticas” como das “teorias crítico-reprodutivistas”. Ora, ao que parece, essa preocupação coincide com um anseio bastante generalizado entre os educadores, o que talvez explique a boa acolhida que tiveram os meus escritos. De fato, tenho sentido a reação positiva dos estudantes através das inúmeras mensagens que recebo solicitando dados biográficos e informações e esclarecimentos sobre a minha concepção educativa. Na verdade, embora gratificante, longe de me sentir lisonjeado com esse fenômeno, sinto aumentar o grau de responsabilidade que recai sobre mim, obrigando-me a trabalhar de forma cada vez mais séria e consistente.
 

Literário - O que mudaria no ensino no Brasil? Que expectativas ainda guarda para a educação no país? Será que a classe docente está desiludida e prestes a deixar de exigir melhores condições para leccionar?

Dermeval Saviani – Evidentemente, há muitas coisas que eu mudaria na educação brasileira. Mas o ponto que considero mais importante se refere à questão dos professores. Nesse sentido eu instituiria a carreira docente com dedicação integral, definindo como preferencial a jornada de 40 horas e, como alternativas, as jornadas de 30 e 20 horas semanais. Isso permitiria fixar os professores em determinada escola dispondo de horas não apenas para as aulas mas também para a sua preparação, para a orientação de estudos dos alunos, para atendimento à comunidade e participação na gestão da escola através de reuniões com a direção, com o colegiado docente e com os pais e líderes comunitários. Dispondo de condições adequadas de trabalho e salários dignos os professores recuperariam a consciência da importância de seu trabalho sendo estimulados a adquirir competência e pôr em ação a sua criatividade e capacidade de iniciativa. Dessa forma, atuando em apenas uma escola eles se identificariam com ela passando a compartilhar dos problemas da comunidade em que a escola está inserida, o que lhe permitirá responder com a sua qualificação e responsabilidade profissional às necessidades não apenas dos alunos mas também da própria comunidade. Com efeito, o desânimo que hoje toma conta dos professores se deve ao fato de que, tendo que trabalhar em condições precárias e necessitando atuar em várias escolas para completar um número de aulas que lhes permita receber um salário
menos vexatório, como poderão se identificar com as escolas, participar de sua gestão e da vida da comunidade? No entanto, o governo e a sociedade cobram deles essas ações e, na medida em que isso não acontece, tendem a responsabilizá-los pelo fracasso das reformas e das escolas, traduzido no insucesso dos alunos.
É claro que uma proposta como a que estou apresentando requer um aumento considerável dos recursos orçamentários destinados à educação. É por isso que, na discussão do Plano Nacional de Educação, assumi a posição de que o ponto de partida da formulação do Plano deveria ser a duplicação imediata do percentual do PIB investido em educação, tal como sintetizei num plano de emergência nos seguintes termos: para fazer face ao atraso em que nos encontramos, proponho a imediata duplicação do percentual do PIB investido em educação, passando dos atuais 4% para 8%, o que apenas nos colocaria no nível das nações que mais investem em educação, como é o caso dos Estados Unidos, Canadá, Noruega e Suécia que se situam na faixa entre 7,5 e 8,5%. Esses países, no entanto, não têm o déficit que temos. Portanto, a rigor, nós, para zerar o déficit, teríamos que investir muito mais. Entretanto, penso que, a partir desse esforço, teríamos chances de começar a tratar com seriedade os problemas da educação, ganhando condições de resolvê-los efetivamente. Por essa proposta, cada instância governamental teria o dobro dos recursos de que hoje dispõe para a educação. Assim, os municípios que, por força do chamado Fundão, têm apenas 10% de seus recursos para investir em educação infantil, passariam a ter 20%. Com isso, já começa a se tornar viável a construção de uma ampla rede nacional de educação das crianças de 0 a 6 anos, mantida e gerida pelos municípios, com a orientação dos Conselhos Estaduais de Educação. Para o ensino fundamental, em lugar dos atuais 15% dos recursos de Estados e Municípios, passaríamos a ter o equivalente a 30%. Lançando mão do parágrafo único do artigo 11 da LDB, que permite aos municípios a opção de se integrar ao sistema estadual ou compor com ele um sistema único de educação básica, será possível construir, a partir dos Estados, um amplo sistema de ensino fundamental coordenado nacionalmente. No caso do ensino médio teríamos o equivalente a 20% dos recursos dos Estados, o que já permitiria que o objetivo de universalização do ensino médio, previsto pela Constituição Federal, deixasse o âmbito dos objetivos remotos para se tornar viável a médio prazo. Com efeito, cabe observar que, diferentemente do ensino fundamental que se compõe de 8 séries, o ensino médio tem apenas 3. Quanto à questão dos professores, considerando a determinação do “Fundão” de que 60% dos recursos se destinem ao corpo docente, a duplicação do percentual tornará exeqüível a meta de implementar a jornada de 40 horas em uma única escola, além de viabilizar a criação de uma espécie de PICD da Educação Básica, semelhante ao que se fez com o ensino superior, através da CAPES, viabilizando, assim, a qualificação dos professores através de bolsas de estudo para freqüentar cursos específicos nas universidades públicas de melhor qualidade. Finalmente, em relação ao ensino superior, a duplicação dos recursos permitirá à União, com o montante dos recursos atuais, consolidar as universidades federais além de manter sua rede de escolas técnicas. Os recursos adicionais, da mesma magnitude dos atuais, poderiam ser divididos em duas fatias: metade se destinaria à educação básica para que a União possa cumprir a função de apoio técnico e financeiro, suprindo as deficiências locais; a outra metade constituiria um fundo por meio do qual seriam financiados projetos que engajariam fortemente as universidades na realização das metas definidas no Plano Nacional de Educação. Essa proposta consta do meu livro Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação, Campinas, Editora Autores Associados, cuja primeira edição data de 1998. Tenho clareza de que sua implantação não resolverá, por si só, todos os problemas da educação brasileira. Mas estou convencido de que é somente a partir dela que a solução se tornará possível. Fora disso, todas as proclamações em favor da educação não passarão de palavras ocas e promessas enganosas, acobertadoras da falta de vontade política para enfrentar decididamente o problema.
 

Literário - Na sua opinião, seria importante uma maior interligação entre as várias disciplinas - em especial entre as que são «parentes próximas» como Psicologia, Sociologia e Antropologia ou, na área Científico-Natural, Física, Química e Matemática - com vista a facilitar o estudo aos alunos? Ou, pelo contrário, uma aproximação maior entre as disciplinas e uma partilha de métodos entre os docentes poderia confundir os estudantes?

Dermeval Saviani – Em princípio, considero positivo o esforço em se conseguir maior articulação entre as diversas disciplinas que compõem o currículo escolar. Isso porque o aluno é um todo e, como tal, deve ser formado integralmente, sendo as disciplinas meios através dos quais se busca atingir aquele objetivo formativo. O que se faz necessário é evitar que se traduza esse desejo de interligação como uma mistura a qual, aí sim, confundiria os alunos reforçando uma visão sincrética, isto é, uma visão indiferenciada dos aspectos que constituem a realidade que se quer compreender. Diferentemente disso, entendendo-se que a constituição das disciplinas se deu pela diferenciação dos aspectos que constituem o todo concreto, elas representam o momento analítico, mais avançado, portanto, que a visão sincrética onde se tinha a percepção do todo sem, porém, se compreender os seus aspectos constitutivos. O que se faz necessário, então, é que o ensino não se detenha nesse momento analítico mas avance em direção ao momento sintético onde o todo concreto é reconstituído como articulação dos aspectos que o integram. Aí se chega à visão do todo, agora, porém, não de forma confusa mas de maneira clara, isto é, com consciência de suas partes constitutivas. É nesse ponto que ocorre, propriamente, a aprendizagem, isto é, o processo através do qual se passa da visão sincrética à visão sintética pela mediação da análise.
 

Literário - O seu trajecto estudantil é repleto de mudanças temperado por saudade, tendo Dermeval Saviani transitado da inicial educação num seminário para a rebeldia académica face ao estado do país. O que resta em si desses dois alunos - do menino que existia aquando da formação primária e do jovem que se revoltou durante a formação superior?

Dermeval Saviani – Não vejo, propriamente, uma contradição entre esses dois momentos. Na verdade, as condições sociais, econômicas e culturais pelas quais passei em minha infância e adolescência integram o processo que permitiu o meu amadurecimento social, político e intelectual traduzido numa percepção crítica da situação de meu país e na conseqüente exigência de exprimir teoricamente a compreensão atingida e atuar, como educador, em consonância com a teoria que venho construindo e divulgando.
 

Literário - Hoje como no passado, os estudantes continuam a ser contestatários. Existe actualmente uma coerência entre as suas reivindicações e o conhecimento da realidade nacional que lhes permita actuar sobre os problemas e propor soluções?

Dermeval Saviani – É verdade que os jovens sempre tendem a contestar a ordem vigente mas isso faz parte do processo de sua formação para assumir, posteriormente, as tarefas de direção da sociedade em substituição aos adultos que, cumprido o seu papel, serão obrigados pela lei do desenvolvimento natural das espécies, a deixar a cena histórica. Isso é normal quando se trata de uma ordem social em desenvolvimento e dotada de relativa estabilidade. Nessas condições, os chamados conflitos de gerações se limitam a aspectos superficiais sem afetar a estrutura da sociedade. Quando se trata de uma ordem social em crise e em processo de substituição por outra forma de sociedade ou regime político, a sociedade se cinde entre aqueles cujos interesses os levam a defender e tentar manter a ordem vigente e aqueles que lutam para instaurar a nova forma social. Nesse caso, a tendência dos jovens é de ficar com o lado progressista já posicionando-se a favor daqueles que buscam mudar a ordem social. E isto é compreensível porque os jovens, normalmente, representam o novo não tendo, enquanto tais, interesse na manutenção do velho. Penso que é isso o que levou o sábio cientista físico Max Planck a afirmar: “As grandes idéias científicas em geral não conquistam o mundo mediante a adesão de seus adversários, os quais terminariam por convencer-se de sua verdade e por adotá-las. Sempre é raro que um Saulo se converta em um Paulo. O que acontece é que esses adversários acabam por morrer e a geração em ascensão se educa no clima da idéia nova. Quem possui a juventude possui o porvir”.
 O problema que parece estar caracterizando o momento presente é que a forma social própria do mundo atual está em profunda crise e, nas atuais circunstâncias, ainda não se delineou uma alternativa histórico-concreta à ordem vigente. Nesse contexto as forças interessadas na manutenção dessa ordem utilizam a derrocada do chamado “socialismo real” para incutir a idéia de que a ordem vigente, se não é perfeita, é a única possível. Os jovens ficam, assim, sem horizontes, dividindo-se, basicamente, em três tipos: a) aqueles que, atraídos pelas palavras de ordem repetidas insistentemente na mídia, se deixam levar pelos apelos hedonistas refugiando-se no individualismo e na indiferença moral; b) os que enveredam por uma saída mística, aderindo a uma das muitas seitas religiosas que vêm proliferando a cada dia; c)por fim, temos aquela parcela de jovens (infelizmente mas, compreensivelmente, a minoria) que não desiste e busca participar dos diferentes espaços onde se vislumbram possibilidades de alterar o estado de coisas vigente e instaurar uma ordem mais justa, mais humana, na qual todas as pessoas possam desenvolver suas potencialidades solidariamente com todos os membros da sociedade.
 Entendo que a situação descrita aumenta em muito a nossa responsabilidade como educadores. Com efeito, penso não ser apropriado cobrar coerência entre as reivindicações dos jovens e o seu conhecimento da realidade a partir do qual eles possam atuar sobre os problemas e propor soluções. Em verdade, a responsabilidade de formular o conhecimento da realidade nacional e propor soluções é mais nossa do que dos jovens cabendo-nos a tarefa de, a partir desse conhecimento e das possíveis soluções dele decorrentes, abrir aos jovens novos horizontes preparando-os para produzir os próprios conhecimentos e agir em coerência com eles.
 

Literário - O Professor Dermeval Saviani sempre tem defendido que um docente não deve limitar-se a repetir os conhecimentos compilados por outros sem nada acrescentar de seu, de analítico e crítico, que faça pensar os alunos. Na sua opinião, o método da simples passagem de conhecimentos (repetição) ainda é comum? Em que medida é que o mesmo pode levar ao desinteresse que muitos estudantes manifestam face às matérias curriculares?

Dermeval Saviani – Eu diria que a transmissão dos conhecimentos já compendiados e disponíveis para sua inserção nos currículos escolares não é negativa, em si. Com efeito, uma das funções da escola é, sem dúvida, possibilitar o acesso aos conhecimentos previamente produzidos e sistematizados. O problema é o caráter mecânico dessa transmissão, isto é, o fato dela ser feita desligada das razões que a justificam e sem que os professores disponham de critérios para discernir entre aqueles conhecimentos que precisam ser transmitidos e aqueles que não precisam. Isto abre espaço para sobrecarregar os currículos com conteúdos irrelevantes ou cuja relevância não é alcançada pelos professores, o que os impede de motivar os alunos a se empenhar na sua aprendizagem. É esta situação, a meu ver, que torna as matérias curriculares desinteressantes para os alunos os quais passam a considerar o ensino como algo enfadonho, uma obrigação carente de sentido da qual eles buscam livrar-se assim que possível. Penso que é exatamente na medida em que os professores conseguem lidar criticamente com os conhecimentos disponíveis, distinguindo entre o que é pedagogicamente relevante e o que não o é, que eles ganham condições de produzir seus próprios conhecimentos e, assim, o seu ensino deixa de ser mera transmissão incorporando também uma contribuição original.

Literário - De acordo com a sua biografia, para concluir os estudos viu-se obrigado a trabalhar enquanto frequentava a faculdade. Actualmente, muitos são os trabalhadores-estudantes que se vêem forçados a esta opção para se formarem. Enquanto docente, como encara as limitações horárias, de pontualidade e assiduidade destes alunos? Considera-se um professor compreensivo para com eles e para com as dificuldades que enfrentam?

Dermeval Saviani – Efetivamente, o professor deve estar atento às condições em que seus alunos freqüentam a escola para que possa fazer o inverso daquilo que normalmente acaba ocorrendo. Com efeito, até mesmo pelas condições difíceis em que realiza seu trabalho, a tendência do professor é estimular os alunos que mais facilmente assimilam as suas lições, deixando de lado aqueles que têm mais dificuldade. Ora, ao contrário disso, penso que ele deveria se preocupar mais com os segundos e menos com os primeiros, pois estes dependem menos do trabalho do professor do que aqueles. Ou seja, os alunos que dispõem de condições mais favoráveis, a partir de algumas orientações dadas pelo professor avançam sem maiores percalços ao passo que aqueles cujas condições são mais precárias necessitam de um apoio mais efetivo do professor. No entanto, é preciso ficar claro que a compreensão a que estou me referindo deve ser entendida em termos propriamente pedagógicos e não, digamos assim, psicológicos. Insisto nisso porque é muito comum que a referida compreensão signifique fazer vistas grossas para as insuficiências, tolerar as faltas, minimizar o esforço, o que, em suma, irá implicar em ministrar aos alunos do noturno em relação aos do diurno ou, de modo geral, aos alunos das camadas trabalhadoras em relação àqueles das elites, um ensino de menor qualidade. Dessa forma se estará, de fato, legitimando as desigualdades.
 

Literário - Muitas vezes confidentes dos alunos, os professores acabam por conhecer os principais problemas que afectam a classe estudantil. Quais as maiores dúvidas e os principais problemas relativos à escola, ao mundo do trabalho ou à vida pessoal (com influência sobre o rendimento escolar) dos estudantes com que trabalha?

Dermeval Saviani – Sob esse aspecto creio que minha experiência não tem algo de significativo a acrescentar. Com efeito, os problemas de que tive conhecimento a partir de confidências dos alunos, seja em relação à escola, à vida profissional ou à vida pessoal, foram aqueles comuns a todo educando, não tendo chegado a exercer influxo significativo sobre o rendimento escolar. Inegavelmente, dentre esses problemas, os mais freqüentes se referem às incertezas quanto às possibilidades de ocupação profissional.
 

Literário - Tendo trabalhado na área educativa fora do Brasil, conheceu diversos vários sistemas de ensino. Acredita que algum deles poderia ser «importado» para o Brasil e implantado com sucesso? Qual seria e que mudanças apresentaria face ao actual?

Dermeval Saviani – Embora seja corrente a afirmação de que não cabe copiar modelos já que cada caso é um caso, cada país é um país, a verdade é que sempre se leva em conta a experiência dos outros e sempre se procura adotar, de algum modo, o modelo considerado bem sucedido ou que tenha conseguido maior divulgação e influência. Aliás, os estudos de educação comparada surgiram no século XIX, exatamente em função do interesse de se aproveitar a experiência alheia como subsídio para a organização, pelos diferentes países, dos seus sistemas nacionais de ensino. Por isso eram enviados emissários a outros países com a finalidade de observar o funcionamento do ensino, os quais retornavam com a obrigação de apresentar relatórios dando conta do que foi observado e indicando os elementos considerados positivos para serem incorporados à organização dos respectivos sistemas de ensino. Ora, nesse processo, o que podemos constatar é que o Brasil se guiou, inicialmente, pela experiência européia, com destaque para a influência francesa. Entretanto, a partir do início do século XX, observa-se um influxo crescente da influência dos Estados Unidos. Ora, o modelo americano de ensino, diferentemente daquele que predominou nos países europeus, considera como função principal do ensino fundamental a socialização das crianças ao passo que o modelo europeu enfatizava a função de formação intelectual o que implicava a garantia de uma base comum, mais ou menos homogênea, a partir da qual todos os cidadãos podem participar, em condições de igualdade, da vida da sociedade a que pertencem. Visando, pois, criar esse patamar comum centrado no domínio dos elementos fundamentais da cultura letrada de base científica, os principais países organizaram os sistemas nacionais de ensino como instrumento para universalizar a escola básica (o ensino elementar) e, por esse caminho, erradicar o analfabetismo.
Em contrapartida, nos Estados Unidos a precedência da função de socialização das crianças atribuída à escola básica levou a vincular as escolas às comunidades próximas, isto é, aos municípios, dispensando-se um sistema nacional e priviligiando-se, na avaliação da aprendizagem das crianças, sua capacidade de relacionamento e interação com as demais crianças ao passo que, no modelo europeu, a avaliação implicava um sistema de exames destinado a aferir o grau de apreensão dos conhecimentos elementares que caracterizam uma formação intelectual correspondente ao domínio da cultura moderna entendida como necessária a toda a população e, por isso, sendo objeto de um ensino comum a todos.
Do ponto de vista do processo, o modelo americano levou a uma maior diferenciação de iniciativas assim como à maior diversificação das formas de gestão, enquanto o modelo europeu conduziu a uma maior centralização das iniciativas e a uma forma de gestão relativamente unificada cuja responsabilidade primordial se localizava no Estado nacional.
Do ponto de vista dos resultados se verifica que o modelo europeu foi capaz de garantir razoável coesão, assegurando um patamar comum que permitiu homogeneizar o acesso à cultura letrada, o que significou um razoável grau de igualdade de condições de participação de todos na vida social. Já o modelo americano resultou bem mais desigual, apresentando diversas distorções que têm sido objeto de alerta das próprias autoridades políticas e educacionais dos Estados Unidos e que volta e meia são divulgadas através da imprensa.
Com efeito, de vez em quando nos deparamos com notícias em jornais ou revistas dando conta de que nos Estados Unidos é comum ocorrer que um significativo número de jovens cheguem a concluir o ensino médio e até mesmo a ingressar na universidade sendo praticamente analfabetos (os denominados analfabetos funcionais). Ora, essa é uma situação inteiramente estranha aos países europeus. Em verdade, nunca encontramos notícias semelhantes a respeito da Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Noruega, Portugal, Suécia, Suiça, em suma, dos países europeus de modo geral. Sem dúvida isso tem a ver com a diferença de modelos que presidiu a organização do ensino em um e em outro caso.
As observações feitas acima nos permitem aquilatar a gravidade da situação em que nos encontramos. Na verdade, considerando que nós sequer chegamos a universalizar a escola elementar, a adoção do modelo americano potencializa enormemente as conseqüências negativas detectadas nos Estados Unidos contribuindo para aprofundar ainda mais a extrema desigualdade que é a triste marca de nossa tradição histórica. Vê-se assim que, se na Europa a influência do modelo americano pode ser até benéfica, pois poderá contribuir para flexibilizar a forma de um sistema já consolidado, no caso do Brasil, onde não se conseguiu ainda implantar um sistema de ensino abrangente em âmbito nacional, a referida influência resulta deletéria nos distanciando ainda mais da meta de garantir a todas as nossas crianças a desejada igualdade de acesso aos bens culturais.
À visto do exposto, posso responder diretamente à questão formulada afirmando que eu não escolheria nenhum país para efeitos de transplantar, para o Brasil, o seu sistema de ensino. No entanto, se devemos nos inspirar em algum modelo para organizar e consolidar o nosso sistema de ensino, eu daria preferência para aquilo que chamei de “modelo europeu” ao invés daquele que vem sendo seguido atualmente representado pelo “modelo americano”.
 

Literário - Quais as vantagens imediatas da criação do FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério)? E as que podem verificar-se a médio e longo prazo?

Dermeval Saviani – O “Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério”, instituído através da Emenda Constitucional de número 14, de 12/09/96, regulamentada pela Lei 9.424, de 24/12/96, teve o inegável mérito de chamar os municípios, além dos Estados, ao cumprimento de suas responsabilidades constitucionais no tocante ao ensino fundamental. Com isso, através de um mecanismo engenhoso, reuniu 60% dos recursos que compõem o orçamento educacional dos Estados e Municípios, destinando-os exclusivamente ao financiamento do Ensino Fundamental. A partir daí foi fixado um custo mínimo por aluno/ano como referência para a definição do piso salarial dos professores o que permitiu que os salários dos professores de muitos municípios, principalmente da região Nordeste, tivessem uma sensível elevação configurando aquilo que poderíamos considerar como “as vantagens imediatas da criação do FUNDEF”.
No entanto, através da estratégia adotada na modificação do artigo 60 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988, o MEC conseguiu a proeza de assumir o controle da política nacional do ensino obrigatório, sem arcar com a primazia de sua manutenção. Ao contrário; ampliou a quota dos Estados, Distrito Federal e Municípios (de 50 para 60%) e reduziu a sua parcela (de 50 para 30%) no financiamento do ensino fundamental. E isto em caráter compulsório porque a forma de constituição do Fundo foi arquitetada de modo tal que os Estados e Municípios, caso não operem de acordo com o mecanismo ali previsto, perderão aqueles 60%, isto é, 15% dos recursos das respectivas arrecadações que, constitucionalmente, devem destinar à manutenção e desenvolvimento do ensino.
 Numa apreciação sintética, de caráter conclusivo, cabe observar que, se essas medidas tinham o objetivo meritório de distribuir melhor os recursos tendo em vista o financiamento do ensino fundamental, elas se limitaram, no entanto, a regular a aplicação de recursos já vinculados, não prevendo novas fontes de recursos e, além disso, reduzindo a participação financeira da União através da Emenda ao artigo 60 das Disposições Constitucionais Transitórias. Como resultado, o custo mínimo por aluno foi fixado em R$ 300,00 (trezentos reais), cifra irrisória comparada com os valores praticados pelos países que lograram generalizar o acesso e permanência no ensino fundamental. Trata-se, assim, de um patamar que consagra o estado de miséria da educação nacional, evidenciando a precária vontade política do atual governo no enfrentamento dessa questão.
Por outro lado, a política educacional decorrente dessas medidas acabou inviabilizando, em diversos municípios, a manutenção, em quantidade e qualidade, de programas de educação infantil, de educação especial e de educação de jovens trabalhadores, especialmente naqueles municípios que, tendo em vista a cobertura do Estado no âmbito do ensino fundamental, decidiram investir seriamente nessas modalidades educacionais, sabidamente de grande importância para as “crianças e adolescentes em situação de risco social”, ironicamente aquelas supostamente privilegiadas pela “política de estímulo” do MEC, conforme estipulado no artigo catorze da Lei 9.424, que instituiu o FUNDEF: Art. 14 – A União desenvolverá política de estímulo às iniciativas de melhoria de qualidade do ensino, acesso e permanência na escola promovidos pelas unidades federadas, em especial aquelas voltadas às crianças e adolescentes em situação de risco social (grifos meus).
Ao que parece, tal enunciado não passa de uma declaração de intenção que mais mascara do que encaminha a solução do problema. Com efeito, com uma taxa de R$ 300,00 por aluno-ano não se resolve o problema do ensino fundamental, ao mesmo tempo que se “desincentivam” iniciativas que vinham, reconhecidamente, apresentando resultados satisfatórios.
Assim, penso que, a médio e longo prazo, só poderão resultar vantagens da instituição do FUNDEF se for alterada a política econômica, permitindo o aporte de um montante mais significativo de recursos para a educação alterando-se, assim, também a política educacional que poderia tomar uma direção semelhante, por exemplo, àquela indicada no “Plano de Emergência” referido acima, na resposta à quarta questão desta entrevista.
 

Literário - A Internet é hoje entendida como um meio de divulgação e comunicação, cumprindo também funções educativas. Que opinião tem da gigantesca rede e como comenta a «exclusão» de tantos estudantes que continuam sem poder aceder-lhe?

Dermeval Saviani – Entendo que a Internet pode ser explorada como um novo recurso pedagógico, de forma semelhante ao que se dava inicialmente com as tabuinhas nas quais os alunos escreviam, substituídas pelos cadernos onde os alunos anotavam as lições ditadas pelo professor, situação essa que foi revolucionada com a descoberta da imprensa que possibilitou a generalização do uso dos livros dando origem aos “livros didáticos”, chegando, depois, ao rádio e, principalmente, à televisão e, agora, aos computadores e à Internet.Como um recurso pedagógico, ela se situa claramente na esfera dos meios, podendo potencializar ampliando, em escala maior ou menor, o alcance do ato educativo, mas não configura esse ato já que a relação pedagógica é fundamentalmente uma relação interpessoal que implica sempre o intercâmbio entre educador e educando, entre professor e aluno através da mediação de instrumentos dos mais diferentes tipos. Efetivamente, a Internet abre amplas perspectivas de acesso às informações disponíveis tanto sob o aspecto da rapidez quanto da quantidade e variedade das mesmas. Mas, por isso mesmo, ela contém de tudo: coisas boas e ruins, elementos preciosos e de excelente nível, mas também muito lixo. Assim, para explorá-la adequadamente é necessário haver orientação. E é aqui que entra a importância da educação e da escola onde desempenham papel central os educadores, de modo geral, e os professores, em particular. Certamente, é desejável que a maioria, senão todos os estudantes tenham acesso à Internet. Mas não podemos perder de vista que as responsabilidades dos professores, longe de diminuir, aumentam proporcionalmente à ampliação do acesso dos alunos a essa “gigantesca rede”.
 

Literário - Conhece o jornal O Literário (acessível na Internet em
www.literario.com.br)? Considera que projectos como este são positivos para a formação cultural de um cidadão?

Dermeval Saviani – De fato, antes de iniciar as respostas às questões formuladas nesta entrevista, tive oportunidade de visitar o “site” do jornal “Literário”. A meu ver, trata-se de uma iniciativa meritória que deve ser estimulada, sendo desejável que esse exemplo seja seguido por outras cidades deste nosso imenso país. É claro que iniciativas como essa enfrentam também limitações de vários tipos, desde a carência de recursos e de pessoal no âmbito técnico até as dificuldades de ordem cultural ligadas à luta para se contar com pessoal intelectualmente preparado para dar conta das várias seções abrangidas pelo jornal. No entanto, como assinalei na resposta à primeira pergunta, a situação em que nos encontramos ao mesmo tempo que nos indica as carências, os limites, também nos fornece os meios através dos quais nós agimos sobre essa mesma situação procurando transformá-la no sentido da superação de suas carências e limites. Deixo, pois, minha palavra de incentivo aos editores do “Literário” exortando-os para que mantenham o ânimo sempre firme não esmorecendo diante dos obstáculos e levando avante essa iniciativa.
 

Literário - Imagine que passava em revista toda a obra que já produziu. Que texto mantinha como o escreveu e qual alterava (como e porquê)?

Dermeval Saviani – Confesso que, até mesmo por falta de tempo em razão das urgências de novos projetos que constantemente me proponho a realizar ou que me são insistentemente solicitados, ainda não procedi a um balanço da minha produção no sentido indicado no enunciado da pergunta. De modo geral, porém, penso poder adiantar que não teria muitas revisões a fazer e isso, basicamente, por duas razões. A primeira porque meus trabalhos, como toda obra, são datados. Assim, cabe considerá-los no quadro da época em que foram produzidos podendo variar o grau em que as contribuições neles contidas extrapolam o momento de sua produção mantendo-se válidas também para períodos subseqüentes, inclusive para o momento presente. Em segundo lugar porque, na medida do possível, tenho procurado utilizar o recurso dos prefácios às sucessivas edições para fazer observações adicionais e apontar eventuais alterações.

Literário - Pode adiantar-nos quais os seus projectos para o futuro imediato, a médio e a longo prazo, e se estes passam apenas pelo campo educacional?

Dermeval Saviani – Bem... os projetos são muitos e todos eles, de algum modo, passam pelo campo educacional, ainda que uns digam mais respeito a aspectos, digamos assim, profissionais e outros a aspectos da vida pessoal. No entanto, na resposta a essa pergunta, vou me limitar aos projetos ligados à minha condição de pesquisador que é o aspecto que decidi, a partir deste ano, priorizar no contexto de minhas atividades profissionais. No futuro imediato pretendo concluir, até julho do próximo ano, o projeto “História das Idéias Pedagógicas no Brasil”. A médio prazo, espero concretizar, entre 2002 e 2004, um projeto de investigação sobre o caráter educativo das máximas e provérbios. E a longo prazo, espero dar continuidade, a partir de 2005 de forma sistemática, ao projeto de dar fundamentação histórico-filosófica à proposta pedagógica por mim denominada de “pedagogia histórico-crítica”, através da retomada dos clássicos com destaque para aqueles que particularmente se debruçaram sobre os problemas da educação e da pedagogia.

Literário - Que mensagem deixa aos seus alunos, aos leitores dos seus
textos, àqueles que o estudam e admiram o seu trabalho em prol da
educação?

Dermeval Saviani – A mensagem que gostaria de deixar, ao termo desta entrevista, é, contra todo o desânimo e a falta de horizontes que nos atinge no momento presente, uma palavra de confiança no homem e na educação, uma mensagem, portanto, de esperança. Com efeito, pelo simples fato de eu continuar trabalhando e lutando no campo da educação, mantém-se viva a esperança, isto é, a confiança de que o homem é capaz de, desenvolvendo as suas potencialidades, superar suas limitações; e isto não apenas como indivíduo mas como espécie, o que significa que, como agente histórico, a humanidade é portadora do futuro, sendo capaz de transformar as condições em que vive na direção da realização de seus ideais. Não fosse assim, tivesse eu perdido a esperança, eu teria, por coerência, que abandonar o campo da educação e me dedicar a qualquer outra atividade. Para mim, um educador sem esperança é uma contradição lógica, um absurdo.